Alguma coisa está fora de ordem

Coluna publicada no JORNAL DO PORTO dia 14-5-2021

Alguma coisa está fora de ordem

*Marta Bellini

O que nós sabemos sobre o Brasil dos movimentos sociais do século XIX e XX? O que sabemos sobre bandidos, rebeldes primitivos e nossos brasileiros dos sertões?

Euclides da Cunha em Sertões, ou em Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa e as obras Bandidos, e Rebeldes Primitivos do historiador inglês, Eric Hobsbawn sobre o Brasil representam o Brasil daqueles homens dos lugares rurais, das searas secas e das veredas, nossos caminhos sem saída.

Hoje, no século XXI, as veredas são as ruas das intituladas favelas e as searas são as secas ruas destas construções em que milhões de pessoas procuram amparo e fogem do desprezo de outros bairros da cidade. A linguagem, essa forte e poderosa fonte da comunicação humana, é transformada em dimensão que marca os habitantes. Nas favelas, dizem os jornais, moram bandidos. As instituições legais, as instituições hegemônicas como a medicina, a polícia, a escola, as igrejas, a política, corroboram.

As palavras são históricas, são fonte de cultura e formadas por ela; na sociedade neoliberal as palavras bandido, mulheres loucas, crianças aliciadas são como mel nas bocas de genocidas.

O caso de Jacarezinho, No Rio de Janeiro é a prova mais cabal de que uma palavra – bandido – obscurece as regras da democracia, as leis do código civil brasileiro e a advocacia como direitos conquistados às duras penas no país. Se gritarmos numa rua, o palavra bandido, quem a gritou garante sua morte. Tanto que a frase "Bandido bom é bandido morto", é a senha para matar o favelado, o negro, o adolescente sem escola, e sem emprego.

Em Jacarezinho, oito das 28 mortes ocorreram dentro de suas casas. E o mandado judicial? Ficaram esquecidos nos bolsos do comandante da operação? Por que fuzilar o rapaz se temos instrumentos legais para prendê-lo? Por que justificar as mortes dizendo que eles tinham 6 fuzis, 16 pistolas, 12 granadas, se o vizinho do atual presidente da república, em 2019, num condomínio chique no Rio de Janeiro, e suposto miliciano, tinha em sua casa 117 fuzis? Qual a diferença?

A diferença não é a quantidade de armas, mas as mãos que a manejam. Para o suposto miliciano enriquecido do condomínio real, a prisão sem fuzilamento, o correto em uma democracia. Para os jovens de Jacarezinho, o fuzilamento, uma vez que bandido bom é bandido morto, o menino da favela, negro, pobre. Ah, eles consomem drogas e matam. Pois respondo: no tráfico de droga todos matam, desde o plantador, passando pelas crianças e jovens que transportam até a classe média dos melhores bairros que as consomem. Sem contar os grandes patrões do tráfico, ilesos e ricos.

Meu espanto é que o vice-presidente do país assim justificou as mortes. Pode ser que nossas raízes de imigrantes, desvalidos, de famílias operárias cederam espaço à ostentação média. Um traço do Brasil. Esquecer os antepassados para ter um lugar ao falso ser. Aparecer outra coisa, agora como aliado de crimes. Do lado dos homens "íntegros" que ignoram as regras das prisões e o direito à lei.

Então, em defesa dos Bandidos quer dizer, em defesa das leis e dos direitos às leis.


P. S. Não adianta me mandar levar bandidos para casa. Não é isso que eles querem. Querem as mesmas condições de igualdade diante das leis.

E a CPI da Covid-19. A culpa é do antecessor.

E os recursos da vacina saindo pelo ladrão do orçamento? Miriam Leitão a chamou de orçamento paralelo. Rio do poder dos eufemismos. Até poucos dias, a economista chamava isso de corrupção. Qual a diferença entre as palavras?

E tratorada e pedalada? Pensem.


*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.
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