Alguma coisa está fora de ordem

Coluna publicada no JORNAL DO PORTO dia 5-6-2020

Alguma coisa está fora de ordem

Vivemos numa sociedade e usamos todo tipo de representação para referir-se às manifestações culturais. Alguém que bebeu muito pode ser chamado de "bêbado como uma cabra". Historicamente esta expressão é do final da Idade Média. Ainda a usamos no século XXI; as representações viajam pela história.

Em terra de cego quem tem um olho é rei; cada macaco em seu galho; casa de ferreiro, espeto de pau; filho de peixe, peixinho é; Deus ajuda quem cedo madruga são ditados comuns no Brasil provavelmente desde tempos remotos, alguns de 1500, de 1600 persistindo na atualidade. Às vezes, mudamos os ditados mostrando uma irreverência incomum. Uma psicóloga que leio sempre mudou o ditado "se conselho fosse bom, a gente vendia" por "se conselho fosse bom, a gente comia".

As representações vistas nestes ditados e em símbolos usados por nós como a cruz entre cristãos, o coração como denominação do amor, as nuvens como chuva, o livro como cultura letrada, a coroa como rei, o leão como algo forte, o louva-deus como um inseto santo (em algum lugar do oriente é um inseto do demônio) entre outros são próprios de qualquer sociedade humana. Criar símbolos e mesmo ditados é um fenômeno psicológico do indivíduo quando este se identifica com um objeto ou pessoa.

Chamamos esse processo de função simbólica, nossa capacidade de construir mentalmente representações com vários significados transformados em palavras, números, imagens e sons. Um exemplo magnífico é o do número zero. Não existia número zero entre os gregos; estes não acreditavam na ideia de vazio. No entanto, no século V depois de Cristo, o zero foi criado pelos hindus. Para estes o vazio existia; era um "lugar" preenchido por Deus e para os matemáticos hindus foi a representação usada para notificar o valor posicional de um número.

A função simbólica permite-nos lembrar de coisas que não estão presentes no início dos 18 meses de idade nos humanos e também em muitos animais. As primeiras construções das representações ocorrem por imitação e evoluem para situações bem complexas como a linguagem e o pensamento. Do ponto de vista psicológico, a função simbólica é – na minha opinião – a base para nossa identificação emocional com fenômenos naturais e culturais. Estão no dia a dia, nos sonhos, na fala, nas expressões corporais e podem ser traduzidos como um dos nossos percursos na existência coletiva e pessoal.

Podemos ler algumas expressões e símbolos em momentos históricos mais marcantes. Maio de 1968 é fecundo nessa criação. A queda do Muro de Berlim, outro evento histórico de muitos símbolos. Os símbolos das empresas permanecem décadas entre nós. A Volkswagen começou a produzir carros em 1937 na Alemanha pela Frente Alemã para o Trabalho. Era orgulho do governo, mas era um símbolo de terror para as crianças da Holanda mesmo depois da derrota de Hitler. Era símbolo de sequestro de crianças holandesas.

Os símbolos são mais ou menos complexos. Podem reverberar em muitos outros ou recrudescer num infortúnio. Penso nisso estes dias e meses.

No Brasil de junho de 2020 muitos símbolos se contorcem no dia a dia do país. Bandeiras ucranianas, brasileiras, dos times de futebol; taco de baseball gravadas com a palavra democracia como vimos no domingo passado. Políticos do atual governo federal tomando leite em um vídeo, o presidente andando a cavalo num faroeste caboclo e cartazes com os dizeres, pátria, deus e família.

Minha percepção destes símbolos emaranhados é a de um Deus parceiro de negócios, um sócio de governo, ou como disse o psicólogo Erich Fromm, um Deus Diretor Geral da Companhia do Universo S.A. mais do que o Deus fraterno. Ou uma família com a arte de guerrear mais do que amar. Sem contar que, hoje, temos muitas famílias diferentes, de classe média, trabalhadoras, de pais homossexuais, de mães lésbicas, de apenas a avó (sem mais nenhum membro da família), de casais heterossexuais, chamadas de famílias tentaculares pela psicanalista Maria Rita Kehl.

Lembro mais uma vez o psicólogo Erich Fromm. Esses símbolos parecem mais uma perda da identificação emocional inconsciente com as relações culturais que, aos poucos, leva às perdas simbólicas mais profundas. Fromm disse que esse fenômeno lhe recordava o "famoso fanfarrão" Mussolini, que muito usou o ditado "viver perigosamente" enraizando – se numa atitude destrutiva da vida. Todos sabemos como este senhor morreu. Símbolos rasos podem fraudar nossa vida.


*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.