Alguma coisa está fora de ordem

Coluna publicada no JORNAL DO PORTO dia 22-1-2021

Alguma coisa está fora de ordem

Recentemente li a tese de doutorado de meu colega da Universidade Federal do Ceará, Remo Bastos sobre os documentos das elites dos EUA que passaram a ser literatura para a direita neoliberal do Brasil para as reformas da previdência e administrativa, ambas reformas que estraçalham a vida socializada do país. Mais do que literatura, são estratégias das elites estadunidense para a política brasileira. Um misto de ódio aos professores, às escolas laicas e aos movimentos sociais e científicos. A tese está disponível na Capes com o título de "No profit left behind: os efeitos da economia política global sobre a educação básica pública".

Escrevo sobre a tese porque – por curiosidade acadêmica – recomecei a ler posts das páginas de facebook de jornais, de várias cores. Mesmo um jornal como a Gazeta do Povo, de Curitiba, reconhecido por suas posições de extrema-direita em questões sociais, feminismo, LGBT, aborto, há, hoje, um tom de defesa das vacinas para a Sars-2, da covid-19. Isso é bom em um momento em que rapidamente se triplica o número de doentes em relação ao pior pico da crise de 2020, ocorrida em agosto.

Minha surpresa são os comentários de bolsonaristas raízes e os "nutella", os menos fanáticos. A cada comentário raivoso contra a vacina ou comentário desqualificador, vou ver o nome do usuário, profissão, gênero. Faço muitas cópias para pesquisas futuras. O preço que pago é o aumento das doses de remédios para arritmia leve. É a coisa de "aguenta coração". E não é que encontrei, nessas lidas, um colega da universidade, já aposentado, brincando de bangue-bangue bolsonarista? Comentei em minha página do facebook meu projeto de escrever um livro sobre esse período, para mim, tão insano.

Dessa postagem, surfei na ideia de meu amigo e colega também de universidade, o historiador Reginaldo Dias. Espantada com o número de professores universitários (de todas as áreas, inclusive das ciências intituladas hard, biológicas e, acreditem, da medicina, que apoiaram e apoiam o desastre cultural e social dos atuais governantes fui ler sobre os esses tempos de homens pequenos falando alto contra as vacinas e a favor da confusão do ministério da saúde.

Para o Reginaldo Dias todos temos um Retrato de Dorian Gray no porão de nossas casas. Carl Jung chamaria de a nossa sombra; a que guardamos entre o chão e o assoalho de nossa alma. No caso de Dorian Gray, de Oscar Wilde, romance de 1890, o estranho retrato do jovem Dorian Gray permite ao protagonista da história, Basil, um pacto para manter sua juventude, conquistas e a vida mundana.

Em nosso caso brasileiro, nosso retrato tão bem escondido nas partes mais baixas da casa, revelam o brasileiro nada acolhedor, o fascista, o patriarca que odeia mulheres, o marido que esconde o dinheiro da esposa e ela descobre 30 anos depois a "poupança" (nesse caso, bem verdadeiro, deu divórcio), o professor universitário bacana que vota em um miliciano, o médico que receita ivermectina para criança e provoca lesões em fígado, inclusive de crianças, o pastor que prega voto em amigos da congregação, o namorado bonzinho que bate em mulheres e, por aí, nossos retratos do porão vagueiam.

Se vocês me perguntarem qual ou quais saídas para isso, eu digo, não sei. Esses meus colegas aposentados são todos doutores nas suas áreas. Então, não é falta de escolarização. Talvez, começando por confrontar nosso retrato oculto. Nossa sombra. De verdade, hoje estou num dia cinza. Eu não sei se vamos sobreviver nesse país. Acabei de saber por uma colega de Manaus que as filhas médicas da elite da cidade furaram a fila da vacina. Isto em um estado onde a população morre por falta de cilindros de oxigênio, falta de médicos e hospitais.

O Brasil não é para fracos. É dos ricos. Dos espertos. Dos porões do retrato não falado.

Ainda sobre a tese do Remo Bastos. Os documentos estadunidenses alimentam os porões brasileiros. Recomendo.

*Marta Bellini

*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.