Mistério do samba de Porfírio do Amaral é desvendado em filme sobre obscuro compositor baiano

Mistério do samba de Porfírio do Amaral é desvendado em filme sobre obscuro compositor baiano
A partir de inédita entrevista de 1971, documentário vislumbra o rico horizonte existencial do artista morto em 2008 sem ter o nome inscrito na história da música brasileira. Porfírio do Amaral em 1971, em entrevista concedida a Fernando Faro e nunca exibida na TV

Reprodução / Vídeo

Resenha de documentário musical

Título: Porfírio do Amaral – A verdade sobre o samba

Direção: Caio Rubens

Pesquisa histórica: Guilherme Stadler

Cotação: * * * * *

? Filme em exibição online no 12º In-Edit Brasil – Festival internacional do documentário musical até 20 de setembro.

? "No fundo, todo mundo é um náufrago que não enxerga o horizonte", conclui Porfírio do Amaral (3 de março de 1917 – 2 de abril de 2008) ao fim de entrevista concedida a Fernando Faro (1927 – 2016) em 1971 para o programa de TV Ensaio. A entrevista com esse obscuro compositor baiano nunca foi exibida.

De acordo com depoimento de Chico Buarque para o documentário Porfírio do Amaral – A verdade sobre o samba, em exibição até 20 de setembro na 12ª edição do festival In-Edit Brasil, a razão para o arquivamento da entrevista seria o fato de Porfírio ter gaguejado ao cantar os sambas que compôs a partir dos anos 1930.

Porfírio do Amaral era gago, mas somente quando cantava, e por essa razão teria permanecido oculto na história da música brasileira. Alguns sambas da obra do compositor – tão desconhecida pelo Brasil quanto a existência do criador dessa obra – são apresentados no filme nas vozes de intérpretes como Gloria Bomfim e Josyara em números musicais captados pelas câmeras de Caio Rubens.

Rubens é o diretor desse fundamental documentário que desvenda o mistério do samba de Porfírio do Amaral ao mesmo tempo em que permite ao espectador vislumbrar o rico horizonte existencial do compositor ao exibir trechos da entrevista biográfica concedida pelo artista a Fernando Faro.

A recuperação da fita com a entrevista legitima tudo que é dito no filme sobre Porfírio porque ele próprio, Porfírio, disse muito sobre ele mesmo ao se deixar revelar pela lente de Fernando Faro em 1971, quando tinha 55 anos.

Caracterizado por Mateus Aleluia como "grande sensitivo poético musical", o artista é documentado pelo cineasta Caio Rubens com base na pesquisa histórica feita por Guilherme Stadler para livro intitulado Porfírio do Amaral – A verdade sobre o samba, nome reproduzido no título do filme.

Porfírio do Amaral em 1971, quando tinha 55 anos

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Ao longo dos 83 minutos do documentário, tanto o compositor quantos os entrevistados – Carlinhos Brown, Elza Soares, Margareth Menezes, Roberto Mendes e Roque Ferreira, entre outros nomes, além dos já citados Chico Buarque e Mateus Aleluia – enfatizam, com maior ou menor clareza, que o samba de Porfírio do Amaral é filho da dor. Da dor ancestral transportada da África para o Brasil nos navios negreiros que cruzaram o Atlântico ("A dor do samba foi originada de uma tristeza que a gente nem sabe de onde vem", diz Porfírio) e, no caso específico desse compositor da Bahia, de profunda dor de amor que, desfeito em 1940, ainda feria a alma do sambista naquele ano de 1971.

Como rememora o artista, a primeira mulher do compositor, Consuelo, desfez a união para viver com outra mulher, Manuela. A desilusão inspirou sambas como Manuela (1940), dirigido com raiva à rival. "A criação vem da dor. Não tem criação sem dor", sentencia Roberto Mendes.

Na obra de Porfírio do Amaral, a dor às vezes foi diluída com o dengo baiano, tempero de Gabriela (1935), samba que abre o filme, encerrado com a interpretação de Tabuleiro da vida (1979) no canto vivaz de Aloísio Menezes.

Entre um samba e outro, Porfírio conta que trabalhou em salina no Rio Grande do Norte e em pedreira em São Luís do Maranhão, durando pouco nesses empregos. Os trechos da entrevista com Faro revelam homem inteligente, de temperamento e ideologia fortes, com consciência social e política, além de aguçada percepção da própria importância e limitação nos horizontes do mundo.

"Nunca toquei nada direito. Nem a minha vida eu toquei direito", inventaria Porfírio, sem fazer tipo ou gênero diante das câmeras do diretor Fernando Faro.

E o fato é que, a julgar pela amostragem de sambas como Nos braços da Aurora (1946) e Samba de coco (1951), Porfírio fez samba direito. A ponto de um desses sambas – Pedra de cantaria, sobre pedreiro saudoso da mulher que via passar pela rua – ter reverberado na criação poética de Pedro pedreiro (1964) por Chico Buarque em eco que Chico caracteriza como "influência inconsciente" em depoimento para o filme em que revela ter ouvido no rádio o samba do colega baiano e de ter sido alertado por Fernando Faro sobre a influência embutida em Pedro pedreiro.

Enfim, em filme necessário, Caio Rubens traz à tona o samba do náufrago Porfírio de Amaral ao mesmo tempo em que aponta a beleza do horizonte existencial desse até então obscuro compositor.