Alguma coisa está fora de ordem

Edição impressa do dia 17-7-2020 - Marta Bellini*


O planeta Terra, ao contrário do que muitos pensam, tem uma história. Podemos ler essa história por camadas diferentes de solo em planícies, planaltos e montanhas. As árvores também têm história. Uma que os cientistas contam, outra delas próprias as quais nunca saberemos ao certo como foi, mas uma boa imaginação nos conta. Uma árvore cortada conta sua história pelos anéis que apresenta no interior do tronco. Muitos pássaros, aranhas, grilos e outros bichos se aninharam nessa casa árvore. As duas histórias se entrelaçam. Ou três, que é a história de nossas vidas humanas brincando nesses seres benditos.

Chamo essas histórias dos seres, inclusive a nossa, a humana, de camadas. As camadas ficam em nossos subterrâneos em forma de história. Nos humanos ficam em milhares de migalhas de memórias, algumas no corpo em forma de cicatrizes.

Na grande floresta das vidas de todos os seres fizemos uma primeira cisão: a cidade e as matas. Nas cidades construímos nossos artefatos, alguns bons e outros ruins. Nas florestas e matas ficaram os bichos, as plantas e as grande diversidade de solos. Haja história para tanta vida.

A história dos vírus passa pelos dois sistemas ecológicos, as cidades e as florestas. São a maior porção de vida-máquina, como os chamo. Ocorre, no entanto, que muitos homens queimam a nossa história. Destroem as camadas da outrora vida. Quando metemos fogo e trator nas florestas, as camadas de vírus migram para outros locais, o das cidades, por exemplo. No Brasil, os donos do poder odeiam a história das florestas. Em nome do progresso, entre janeiro e abril de 2020, esses senhores já destruíram 1.200 quilômetros quadrados de floresta. No fogo, o apagamento da história das árvores foi o apagamento das histórias dos animais.

Muitos gritos de dor de macacos, onças que sucumbiram à morte por fogo serão camadas invisíveis de uma história brasileira.

Morrem onças, gaviões, macacos, sobram roedores, mosquitos que escapam para as camadas das cidades onde teremos zika, dengue, chicungunha, hantavírus e é claro, a família coronavírus. Sem florestas os humanos aproximam-se das ex - camadas de florestas. Na Uganda, uma pesquisa feita com 900 pessoas mostrou o grau perigoso de contato dos seres humanos com primatas após destruição das barreiras ecológicas. O avanço da agricultura em áreas de florestas abriu oportunidades para infeção de crianças e adultos e viroses atrozes como o hantavírus. Essa pesquisa é contada em detalhes na Revista da Fapesp e no artigo da revista Landscape Ecology. No Brasil essas infecções ocorrem em cultivos de cana – de - açúcar no interior de São Paulo, mas ninguém nos conta.

A equação é simples: o fogo mata os predadores de ratos, mas não mata os agentes da transmissão de viroses fatais aos humanos. Ratos têm rápida locomoção, rápida reprodução assim como alguns insetos, também agentes de vírus. José Luiz Proença Módena, biólogo da Unicamp, os primeiros contatos dos vírus não trazem complicações graves aos homens, mas os vírus estão em constante modificação e se adapta, aos humanos formando outras camadas, novas camadas de novas histórias como as da pandemia.

Nas cidades, as novas camadas de história dos vírus encontram-se com outras, as camadas de populações pobres nas vilas periféricas ou favelas. Outra história emerge desse encontro, a história das mortes na pandemia. Os governos naturalizam essas camadas de mortes. Foi só uma gripezinha, diria um governante. Não, não é uma gripezinha. É uma história de desmando, desleixo e deboche das vidas de todos.

Assim, das vidas das florestas às vidas das populações mais pobres nas cidades, as histórias se unem.

O fogo na Amazônia significa a destruição de humanos pelo vírus na cidade. É só um "fogozinho", diria certo presidente.

Com a pandemia instalada, novas camadas de história sobrevêm; a história dos vendedores de cloroquina a qualquer custo; a história da ivermectina, das águas bentas de dois mil reais de falsos profetas. Ao fim e ao cabo parece vencer a camada de história do capitalismo. Lucro de qualquer modo, sobretudo ao modo morte.


*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.