Alguma coisa está fora de ordem

Coluna publicada no JORNAL DO PORTO dia 3-7-2020

Alguma coisa está fora de ordem


Em Viva o Povo Brasileiro, livro fantástico de João Ubaldo Ribeiro, as elites brasileiras nascem de machos humanos violentos e cruéis. A história vem de um período de 1647 a 1977, na Ilha de Itaparica, onde os primeiros ascendentes das elites brasileiras, semelhantes aos jagunços, tomam terras e outros homens e, geração após geração, constituem a identidade nacional das elites, uma elite rural, sem afeição pelo povo, refratária aos estudos, escravocrata, e a lei é a do mais forte.

Esse povo, se o romance continuasse, após 1977, viveria ainda uma ditadura até 1988 quando sobreveio a Constituição cidadã, agora em 2020, retaliada para dar lugar a um projeto neoliberal de perdas e danos. Perdemos em 2017, 20 anos de construção de uma educação crítica, quando o presidente da época se uniu ao cervejeiro Leman para elaborar a pior Base Nacional Comum Curricular do país. Voltamos a 1600 quando patrões mal suportavam escolas para alfabetização da população. Em 1600, outros países da América latina já tinham universidades. No Brasil, a primeira universidade pública para atender as elites somente, é de 1810.

Nossa elite odeia estudar. Quando estudam, esnobam os que não têm acesso à educação. Estamos em 1800. Rodopiamos na história.

Estamos em 2020 com projetos de retrocesso a 1600, 1700 ou 1800, ao gosto de freguês. Sem carteira de trabalho com o presidente de 2017; sem previdência, com o presidente de 2019. Sem ética, com os dois.

A nossa situação na pandemia é a mesma. Ora, vamos, ora voltamos e o número de mortes aumenta dia a dia. Mil mortes por dia, ou 800, num dia menos pior.

Os países da Ásia Oriental, China, Coreia e Japão descobriram já em dezembro de 2019 que estavam com um vírus estranho fazendo vítimas de pneumonia. Imediatamente, sem conhecer bem o coronavírus, tomaram um conjunto de medidas para um vírus de propagação alta e rápida.

Com dados de pacientes souberam, logo nos primeiros dias, que pessoas idosas e com baixa imunidade poderiam ser mais vulneráveis; também viram que a taxa de recuperação era diferenciada em diferentes regiões. Depressa recomendaram o distanciamento social ou como gosto de chamar, solidário; uso de máscaras, a quarentena; bloqueios de fronteiras, sanitização de espaços públicos; suspensão das aulas; fizeram mais hospitais e ampliaram respiradores.

O resultado destes cuidados foram poucas mortes no Japão e Coreia. A China, apesar de muitas mortes, evitou que o covid-19 produzisse uma catástrofe e no meio da pandemia começou a elaborar uma vacina.

No Brasil parecemos uma Itaparica de 1600. "É só uma gripezinha", diria um dirigente local, no século XVII. Não tinha nenhum órgão de saúde. No Brasil de 2020, temos um ministério, mas ele não funciona. Nem ministro temos. No Brasil de 1700 não tínhamos universidades e produção de tecnologia e ciências. No Brasil de 2020, temos boas universidades públicas e instituições de saúde respeitáveis, mas quase foram privatizadas pelo ministro da economia, o mestre em fazer desaparecer o país e seus habitantes.

De janeiro a março de 2020, a Coreia perdeu 75 pessoas. O Brasil já bate o número de 59 mil pessoas, sem contar a subnotificação que nos elevaria a quase 200 mil pessoas mortas, segundo um grupo de pesquisadores da expansão do covid-19, na USP de Ribeirão Preto, S.P.

João Ubaldo, definitivamente, merece ser lido. Como conseguiu, num romance, expor as reais feridas do povo brasileiro, fiel vítima das elites brasileiras?


*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.