Como um livro sobre imigrantes escrito por americana revoltou autores hispânicos

Jeanine Cummins, autora de 'American dirt' - Divulgação

Jeanine Cummins, autora de 'American dirt' - Divulgação

Elogiado por Stephen King e Oprah Winfrey, o novo romance "American Dirt", lançado na semana passada em inglês e espanhol (com o título "Tierra americana") com uma agressiva campanha de marketing, prometia ser "um novo clássico americano".

Mas em vez disso, sua autora, a americana Jeanine Cummins, tem sido acusada por escritores hispânicos de explorar a tragédia dos migrantes mexicanos em um ano eleitoral nos Estados Unidos.

Os críticos também a acusam de validar estereótipos, como os citados pelo presidente Donald Trump para justificar sua política anti-imigratória.

Qual é a história?

O romance conta a história de uma mexicana, dona de uma livraria, que foge para os Estados Unidos com seu filho pequeno. Eles embarcam na "Besta" ("La Bestia"), o trem de carga utilizado por migrantes, após sobreviver ao assassinato de quase toda a sua família em uma festa de debutante pelas mãos de narcotraficantes.

A publicação do livro gerou uma intensa polêmica sobre a apropriação cultural, a marginalização dos escritores hispânicos por parte da indústria editorial americana, os riscos de espalhar ideias falsas quando não se conhece bem o assunto sobre o qual se escreve e os limites responsáveis da ficção.

Divulgação cancelada

A tempestade surpreendeu a Flatiron Books, que na noite de quarta-feira (29) suspendeu a turnê de Cummins para promover o livro.

Elogios e filme em andamento

O escritor Stephen King apresentou o livro como "maravilhoso". Don Winslow afirmou que "é o 'As Vinhas da Ira' dos nossos tempos", em alusão ao consagrado livro do escritor John Steinbeck, que rendeu o prêmio Pullizer de melhor ficção em 1940.

Uma adaptação para o cinema do livro de Cummins já está em andamento.

Apelo a Oprah

Mais de 120 escritores, no entanto, inclusive a romancista mexicana Valeria Luiselli e a escritora hispânica Myriam Gurba, que iniciou o debate, assinaram uma carta aberta enviada a Oprah para que reconsiderasse sua decisão de recomendá-lo para seu clube do livro, uma seleção que garante sucesso nas vendas.

"Esta não é uma carta que pede para silenciar ou censurar", dizem, mas desejam que não se promova um livro, que dizem que "é explorador, simplifica demais e está mal informado; cai com muita frequência no fetichismo do trauma e no sensacionalismo da migração e da vida e da cultura mexicanas".

A atriz mexicana Salma Hayek chegou a publicar uma selfie com o livro sem saber da polêmica, mas pediu desculpas em seguida.

Lançamento desastroso

As fotos tuitadas pela própria Cummins de um jantar com lagosta para o lançamento do livro que mostra arranjos florais decorados com arame farpado, em alusão à capa do livro, tampouco ajudaram.

"Border chic" (fronteira chique), criticou Myriam Gurba no Twitter. Segundo os escritores que assinaram a carta, as imagens são "cruéis" e "insensíveis".

Acadêmico mostra problemas

"Este é um livro que simplifica o México, que utiliza mal o espanhol, é um livro onde a protagonista, que é mexicana, não faz coisas que fazem sentido para um mexicano", disse à AFP Ignacio Sánchez Prado, mexicanista e professor de estudos latino-americanos da Washington University em St. Louis, Missouri.

Autora tem avó latina

A autora, que se define como branca e 'latinx' (sua avó é porto-riquenha), não comentou a polêmica nas redes sociais, mas advertiu no jornal "The New York Times" que "existe um perigo às vezes de ir longe demais no silenciamento das pessoas".

"Ninguém tenta censurar Cummins. Pode continuar produzindo o que quiser", disse à AFP o escritor Daniel Olivas, autor de um livro de poemas sobre a fronteira, "Crossing the border: collected poems" e um dos signatários da carta enviada a Oprah.

"Mas a promoção deste livro como 'o grande romance americano' e 'um feito deslumbrante', da proporção de John Steinbeck, é simplesmente mortificante quando muitos escritores latinxs recebem uma mera fração desta atenção e compensação monetária", afirmou, em alusão ao autor contemplado com o Nobel de Literatura (1962).

Presidente da editora admite erros

A Flatiron, que obteve os direitos do livro após uma disputa aguerrida e um cheque de sete dígitos para Cummins, não respondeu aos pedidos da AFP para comentar a controvérsia e entrevistar a autora.

O presidente da editora se disse "orgulhoso" de ter publicado o livro, mas admitiu que nunca deveria ter sido apresentado como um romance "que define a experiência do imigrante". Lamentou que "uma obra de ficção bem intencionada tenha gerado um rancor tão virulento".