Alguma coisa está fora de ordem

Coluna publicada no JORNAL DO PORTO dia 26-6-2020

Alguma coisa está fora de ordem


Na madrugada de 1882, na virada do dia 17 ao 18 de março, um embusteiro roubou as joias da Imperatriz Teresa Cristina, esposa de D. Pedro II, e de sua filha, a princesa Isabel, na residência imperial, o Palácio de São Cristovão, no Rio de Janeiro. A imperatriz havia usado as joias em sua festa de 60 anos de idade. Depois da cerimônia, foram guardadas em uma caixa sob os cuidados de Francisco de Paula Lobo, do serviço particular do Palácio.

Esse saque movimentou a cidade do Rio de Janeiro. A historiadora Lilia Moritz Schwarz conta que a oposição, prontamente, acusou D. Pedro II, afinal as joias da realeza eram objetos públicos e o Palácio não parecia um prédio bem vigiado.

Por serem itens da Coroa e não objetos pessoais, um rol de acontecimentos se desenrolou para readquirir as joias e prender o malandro. Rapidamente chegaram, no palácio, primeiro, a polícia da corte, o delegado e até o ministro da Justiça foi chamado.

A sugestão inicial foi a de um ladrão comum no interior do palácio. Porém, imperadores não são pessoas comuns. Era, então, outro tipo de roubo. Nesse caminho, a família real, tão discreta em sua vida íntima, se viu cercada por boatos. Para complicar, escreve Schwarz, uma carta anônima, dias depois, indicou onde estavam as joias: numa caixa de biscoitos enterrada na casa do suspeito Francisco Paula Lobo, o serviçal do Paço.

Contudo, os problemas para a realeza aumentaram. Dentro do estojo não somente havia as joias roubadas da imperatriz; havia muitos outros adornos femininos da Coroa. Devolvia-se outras joias femininas no mesmo pacote de objetos da Corte.

Era, no mínimo, estranho. O caso foi resolvido rapidamente. O mordomo Francisco de Paula, acusado de roubo, foi afastado do palácio, mas manteve chaves do paço, e era protegido por D. Pedro II. Os outros implicados no roubo foram soltos e os dois policiais do caso, foram agraciados com comendas.

A imprensa da época chamou o arranjo de D. Pedro II de "silenciar" os policiais e "amaciá-los" com títulos. O judiciário, a Câmara e o senado "chiaram"; afinal o ministro da justiça e o imperador estavam escondendo algo. Três personagens importantes do Brasil Império, Raul Pompéia, José do Patrocínio e Arthur de Azevedo, escreveram, também, sobre as fragilidades do império e suas instituições.

As joias foram roubadas? Ou foram "doadas" a alguma outra mulher? Era uma história escandalosa pelo estranho desfecho.

Era 1882 e aparecia no Império, não pela primeira vez, a palavra estava associada corrupção associada à ideia de subornar alguém.

Após o Império, o sentido da palavra corrupção mudou; mas o comportamento secular das elites se manteve fazendo do Brasil um dos países campeões na arte da corrupção.

A República brasileira herdou a estratégia das elites governamentais e mesmo na ditadura de 1964 a 1988. Neste período a Mendes, Camargo Correia, Odebrecht e Andrade e Gutierrez foram as empreiteiras que, de forma magnifica, esgotaram recursos do Estado.

A Ponte Rio-Niterói foi uma daqueles monstrengos arquitetônicos construídos na ditadura por uma dessas empreiteiras. Dados espantosos dessa corrupção estão no livro Pedro Henrique Pedrosa Campos, Estranhas catedrais, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Da ditadura aos dias de hoje, nada de novo no front. As vendas das telecomunicações no governo FHC foram rendosas.

Para muitos de nós, a corrupção virou algo monótono. No entanto, não é natural. Hoje estamos envoltos, mais uma vez com um presidente que fez da eleição uma bandeira contra a corrupção, e, mais uma vez, as corrupções submergem no dia a dia. As elites e seus partidos utilizam dos jargões "contra a corrupção, a mais antiga e mais marcante senha brasileira que dá passagem a Brasília.

Talvez o erro esteja em nós que votamos sempre nas mesmas palavrase nas mesmas bocas de governantes. Uma certa preguiça? Uma certa reza? Me contem se souberem.


*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.