Alguma coisa está fora de ordem

Alguma coisa está fora de ordem


Sou dessas pessoas que se importam com a destruição de florestas, de matas, rios, mares, animais; de tudo que chamamos de natureza. Muitos falam em revolução tecnológica, ou evolução do mundo, mas cada floresta dizimada, para gado ou soja, nada tem de revolucionário. Primeiro porque – no caso do Brasil – a melhor carne vai para países ricos. Comemos o rebotalho. Assim como o frango. Para além dos restos de carne, temos, é claro, os métodos mais primitivos e cruéis de mortes destes animais. A carne do frango dos industrializados nuggets são de pintinhos recém-nascidos que caem, com penas e bico, isto é, vivos, na esteira da morte e da carne. Os nuggets são uma tecnologia ótima. Chegamos em casa à noite e é só pôr o pedacinho de pintainho no fogão moderno e lá vai uma nojeira contemporânea para o estômago.

O outro lado dessa história é que nas florestas moram milhões de vírus. Cada derrubada de árvores, obrigamos esses seres-máquinas, os vírus, de replicação rápida, a encontrar outros lugares para sua reprodução.

Nenhum governante fala disso. A palavra de ordem destes senhores semicegos é economia. É o que ouvimos na TV, rádio e redes sociais nessa época de pandemia: o coronavírus versus a economia. Que economia? O Brasil, desde 2016, se desindustrializa. Muitas indústrias fecharam. Tal é a situação que não temos produção de respiradores artificiais, máscaras e remédios. A economia, agora no país, não passa de vendas e comércio, muitas vezes de artefatos feitos na China.

Nosso desafio não é apenas a economia (aspas), nem a pandemia como conceito. Nosso desafio é a escolha que fizemos em perder vidas para o covid-19. Em odiar quem chora pela morte de filhos jovens mesmo sendo salmista em igreja todo final de semana como é o caso do engenheiro carioca que chutou as cruzes postas na areia da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro.

O que faz um católico salmista semanalmente em uma igreja católica chutar e retirar o símbolo da saudade e dor da morte de suas famílias pelo covid-19? Quem lhe deu o direito de derrubar uma cruz simbolizando filho de um pai homenageando seu filho na cidade onde viveu e trabalhou?

Neste percurso, continuo a perguntar, "O que faz um presidente de um país dizer E DAÍ ao ser indagado pelas mortes de tantas mulheres trabalhadoras e tantos homens que constroem o Brasil dia a dia? O que faz um ministro da educação, sim, da educação, rir dos mortos?

Estamos na maior crise pandêmica do mundo. As crises, diz o filosofo Edgar Morin, nos abrem dois caminhos, o da saída saudável, solidária e de aprendizagem e o da construção de uma sociedade monstruosa, aquele que procura um culpado, um bode expiatório, uma imolação.

Escolhemos, no Brasil, a segunda via. Talvez seja esse o caminho do engenheiro salmista. Acuado diante da pandemia e da morte, chuta as cruzes, chamando o pai desolado de comunista. Este senhor, com certeza, vê no filho morto de outro homem, um culpado. Culpado por ter morrido. O pai, bode expiatório, torna-se comunista.

Eu estava com inveja dos italianos, pelo menos os que vi nas TVs, um país com cidadãos solidários na pandemia. Vizinhos cantavam para outros, para ampara-los na tristeza. Faziam compras para os mais velhos. Faziam serenata para namorados. Uma alegria, um isolamento solidário. Pois no Brasil, além de desprezarmos o uso das máscaras, nossas máscaras sociais caíram.

De camaradas bonzinhos, de pessoas receptivas, de carnavalescos, tornamo-nos cidadãos antidemocráticos. Deputados invadem hospitais porque a senha foi dada pelo presidente; católicos chutam as cruzes de filhos de pais desesperados; empresários querem vender a qualquer custo; e uma pequena multidão quer o nazismo e o fascismo no Brasil. Um grupo de policiais matam pessoas negras todos os dias; um presidente e um ministro da saúde que não sabe geografia (e se diz militar da logística) está mudo diante da pandemia; um diretor da Fundação Palmares, negro, odeia pessoas e movimentos negros.

Recorro a Morin novamente. Vamos da pandemia à uma megacrise generalizada. Os vírus mostraram quem manda nas florestas. Não são, pois, os donos de frigoríficos, nem os mais carnívoros que querem gado na Amazônia. As florestas são dos vírus. Simples e óbvio assim. São das bactérias. Quanto de nós sabemos disso? Não sabemos, as informações sobre isso não nos sãos dadas. A fórmula é essa: cortou florestas, vírus migram.

A economia baseada no comércio vai diminuir. Sem trabalho, sem salários porque as leis permitem demissão ou diminuição dos salários, com a não contratação de médicos, enfermeiros e outros para manter a pandemia longe da população, o Brasil opta para ir do nada a lugar nenhum. Optou pela distopia como num filme de zumbis.

Os 43.000 brasileiros/as mortos/as são homens, mulheres e crianças que não puderam fazer o confinamento. São aqueles que não tinham casa, nem um patrão mais consciente da pandemia, para fazer isolamento social. Deveríamos pensar em isolamento solidário, mas não, fizemos isolamento social. Nem a palavra "social" ajudou.

Estamos a caminho de mais de 100.000 mortes e tudo indica que a brutalidade da pandemia se aprofunde; a brutalidade policial se acentue e a raiva tome conta das populações mais oprimidas pela fome e doença. Seremos, ou melhor, já somos, o pior país do mundo diante da pandemia. Ah, mas, vamos encontrar um culpado, essa gente da Europa. Vamos também encontrar um bode-expiatório, ah, esses comunistas. Mas uma coisa é certa. Vamos encontrar TODOS a morte. Sem choro, nem vela.

*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.