Alguma coisa está fora de ordem

Coluna publicada no JORNAL DO PORTO dia 12-6-2020

Alguma coisa está fora de ordem


Um ano e meio e estamos em meio a uma velhice governamental sem tamanho. Tantas promessas, juras de amor e fake news e nada mais velho do que governo sem a arte de governar. Até parece que somos o povo com mais juramentos de bom governo. Claro, antes das eleições. Como nos enganamos mais uma vez?

Que tipo de povo somos? Uma colega do Rio de Janeiro disse, no final de 2017, que "até as formigas das caçadas da cidade" conheciam o presidente atual.

A nossa experiência de acreditar em candidatos valentões vem da preguiça de pensar ou de uma carência nacional? Ou somos, como assinalou um de meus escritores prediletos, Mário de Andrade, heróis sem caráter? Sobrevivemos às crises econômicas sem reclamar. Saímos quase ilesos de desemprego com a garganta seca; nem pedimos água. Balas perdidas nas ruas das grandes cidades, mas liberamos armas de caça.

Qual é a nossa mesmice? Aquela conduta que permanece séculos a fio sem mudar? Em que lugar guardamos nossa indignação? Ou não a temos? Darcy Ribeiro, antropólogo e deputado, homem maravilhoso, sustentava que as elites brasileiras castigam qualquer manifestação popular coma tortura e a morte, por isso, somos tão obedientes. Não sei se concordo com essa ideia de Darcy. Isso porque hoje morremos crianças e jovens sem mesmo lutar "por engano" mesmo em nossas casas.

Ou somos resignados? Resignar-se significa "demitir-se", para o psicólogo James Hillman. Também significa "aguentar a vida sem reclamar". Re-signação, literalmente é perder a qualidade de vida. Pois bem, temos que perguntar, " O que aconteceu conosco? ".

Todos os ministérios do governo federal estão inativos para a população. Estão ativos apenas para desmanchar quase 500 anos de história de lutas pelas escolas públicas, pelo Sistema de Saúde Unificado, pela tecnologia e ciência, pelas florestas ou que restam delas, pelas populações indígenas, negras, asiáticas que constituem com as brancas o maior grupo miscigenado do planeta. Perdemos o gosto pelas chamadas "almas" do Brasil para apreciar cavalos correndo com um presidente, para levantar o braço pedindo armas, para a estética da demolição das instituições que – para o bem e para o mal – sustentam a participação na precária democracia.

Se perdemos o caráter no sentido de perder a cultura, a imaginação, perdemos também nosso rosto brasileiro. Nos tornamos o quê? Quem somos hoje neste país? Seremos apenas expectadores de um presidente que corre domingo a cavalo pela esplanada? De um grupo de ministros que o seguem sem máscaras a brincar de morrer de covid-19 como adolescentes que guiam perigosamente por estradas?

Seremos apenas meros expectadores de espetáculos dominicais? Esse é o mito brasileiro? Um homem num cavalo em um domingo de sol prometendo uma economia melhor? Que economia é esta em que R$ 83 milhões de reais são transferidos para gastos em propaganda? (que, felizmente, hoje, quando escrevo esta coluna, o ato foi revogado graças ao Ministério Público Federal).

A psicanalista Maria Rita Khel em seu livro Eu mínimo, descreveu a volúpia de muitos deputados em comprar vários carros da última moda. Essa vontade de ter carros chiques vem, muitas vezes, daquela infância depreciada, em que esses senhores não tinham carrinhos de brinquedo. Vingam-se do povo. "Não tive carrinhos, agora posso comprar carrões".

Posso dizer, então, "Não tive cavalos no haras rico, agora ando a cavalo na esplanada". Ou, "Vendi travesseiros da Nasa, agora sou ministro da Ciência e tecnologia". Ou ainda, " Quase não passei no concurso da Universidade Federal, agora sou ministro da educação, ou na escrita do próprio, educassão".

Nós, por outro lado, ainda podemos dizer, "Não temos governo, queremos um governo com caráter".

*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.