Discos para descobrir em casa - 'A arte maior de Leny Andrade', Leny Andrade, 1964

Discos para descobrir em casa - 'A arte maior de Leny Andrade', Leny Andrade, 1964

Capa do álbum 'A arte maior de Leny Andrade', de Leny Andrade

Reprodução

? DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – A arte maior de Leny Andrade, Leny Andrade, 1964

? "Meia-noite. Copacabana. Manhattan Club e a arte maior de Leny Andrade!". Com essas palavras, o apresentador da boate carioca Manhattan Club – situada na efervescente rota musical do samba-jazz que proliferou pelo bairro de Copacabana no início dos anos 1960 – introduz o show perpetuado em A arte maior de Leny Andrade, segundo álbum da cantora e, sim, também pianista Leny Andrade.

Era sintomático que o segundo álbum de Leny de Andrade Lima, carioca nascida em 26 de janeiro de 1943, fosse disco ao vivo gravado em apresentação da cantora em boate de Copacabana. Afinal, tinha sido nesse bairro e cartão-postal carioca, mais precisamente no lendário circuito de boates conhecido como Beco das Garrafas, que Leny Andrade se tornou a sensação a partir de 1959, quando ainda era adolescente de 16 anos e já cantava na noite de Copacabana.

Leny era baixinha, mas a estatura da voz deixou imediatamente claro que a cidade do Rio de Janeiro (RJ) estava diante de uma das maiores cantoras do Brasil. E também do mundo que, nas décadas seguintes, se curvaria à arte maior do canto de Leny Andrade nos mais cultuados clubes e nichos do jazz.

Já evidenciada na infância, a rara musicalidade da artista seria burilada em aulas de piano, instrumento cujo ensinamento ajudou Leny a afinar e a domar o canto farto. Essa precocidade levou a cantora a gravar alguns singles entre 1958 e 1959, editados por pequenos selos, todos sem a repercussão do primeiro álbum de Leny, A sensação, gravado na RCA-Victor por intermédio de Ivon Curi (1928 – 1995) e lançado em 1961 já no rastro do frisson causado pela cantora nos palcos minúsculos das boates de Copacabana.

Dá para entender perfeitamente a razão desse frisson ao escutar o álbum A arte maior de Leny Andrade, gravado em 1963 e lançado em 1964 via Polydor, selo da gravadora Philips. Embora nada na capa indicasse ou ao menos sugerisse tratar-se de registro de show, o LP A arte maior de Leny Andrade foi disco gravado ao vivo de forma pioneira no Brasil.

A dinâmica singular de Leny nos improvisos vocais – scat singing, no dicionário do jazz – saltou aos ouvidos na interpretação de músicas como Baiãozinho (1963), tema então recém-lançado por Eumir Deodato. Baiãozinho foi traduzido para o idioma do samba-jazz na abordagem feita por Leny Andrade com o entrosado toque do trio formado por Tenório Jr. (1941 – 1976) ao piano, José Alves (o Zezinho ou Zé Bicão) no baixo e Milton Banana (1935 – 1999) na marcação leve da bateria manuseada como refinada máquina de ritmo.

Tanto a cantora como o trio de samba-jazz tinham bossa. Bossa tratada com a influência do jazz, mas sem deixar de ser essencialmente samba, ritmo dominante no repertório de Leny Andrade (ainda que o bolero ganhasse progressivo terreno na discografia da cantora nas décadas seguintes).

Foi com a bossa do fantástico quarteto que o então recente Samba do avião (Antonio Carlos Jobim, 1962) pousou no pequeno palco do Manhattan Club com os graves que a cantora adensaria ao longo de trajetória musical sempre coerente.

Na época do LP A arte maior de Leny Andrade, álbum lançado em CD no Japão e lamentavelmente nunca editado no Brasil nesse formato, a voz de Leny Andrade tinia com agudos reluzentes como os dados pela artista ao fim da interpretação de Vai de vez (Roberto Menescal e Luís Fernando Freire, 1963) e no canto de A morte de um Deus de sal (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, 1963), composição lançada por Marcos Valle no ano anterior ao lançamento do pioneiro disco ao vivo de Leny.

E por falar em Marcos Valle, o repertório do álbum A arte maior de Leny Andrade incluiu Amor de nada (1963), então recente samba da parceria do compositor com o irmão Paulo Sérgio Valle. No toque desse samba Amor de nada, o fraseado jazzístico do piano de Tenório Jr. se harmonizou com o canto de Leny.

Esse piano reinou soberano no registro de Embalo (1964) – tema instrumental de autoria de Tenório, músico e compositor carioca – pelo trio de samba-jazz. Sempre seguindo a cadência desse samba derivado da bossa nova, Leny Andrade deu voz no disco a O mar e o amor (Odilon Olyntho e Jorge Omar, 1964), música esquecida nesse disco e que, por isso mesmo, se tornaria rara e pouco ouvida, assim como esse segundo álbum de Leny.

A arte maior de Leny Andrade pode não ser o título mais emblemático ou o mais cultuado da discografia da cantora, mas é retrato fiel da fase inicial da artista. Basta ouvir o canto do samba Vivo sonhando (Antonio Carlos Jobim, 1963) – encerrado com citação jazzística do samba-canção Só louco (Dorival Caymmi, 1955) – para perceber a maioridade da cantora de então 21 anos.

Alternando passagens intensas e suaves, a abordagem do afro-samba Consolação (Baden Powell e Vinicius de Moraes, 1963) evidenciou a fina sintonia entre cantora e músicos – sincronia merecedora de aplausos eternizados na gravação ao vivo.

Na disposição das 12 músicas do álbum A arte maior de Leny Andrade, o afro-samba Consolação foi seguido por número instrumental, Moça flor (Durval Ferreira e Luis Fernando Freire, 1963).

Na sequência, apareceu a única música estrangeira do repertório, There will never be another you (Harry Warren e Mack Gordon, 1942), canção norte-americana que se tornara um dos standards do jazz e que, no disco, caiu em suingue que evidenciou a maestria de Milton Banana na condução da bateria.

Aditivada com os scats sagazes da cantora, a abordagem da canção There will never be another you provou que, sim, Leny Andrade já se igualava em 1964 com as maiores divas norte-americanas do jazz – com a diferença de que, no Brasil ou no exterior, a artista carioca sempre fez questão de cantar preferencialmente em português.

E foi em bom português que a cantora deu show no fim do disco A arte maior de Leny Andrade ao cair com dinamismo inigualável no balanço do samba Influência do jazz (Carlos Lyra, 1962) em interpretação digna das grandes cantoras que fazem do canto uma arte de dimensão eterna.