Alguma coisa está fora de ordem

Coluna publicada no JORNAL DO PORTO dia 29-5-2020

Alguma coisa está fora de ordem

A sociedade atual está, de certa forma, pautada no medo. TVs, jornais, todos os dias, falam de assaltos, de mortes por tiros perdidos em bairros pobres, em favelas de cidades grandes, do trânsito, da poluição, da polícia, dos impostos, dos hospitais. Medo de perder o emprego, de não conseguir viver dentro do orçamento, de ficar velho, de perder o viço da pele, e, até mesmo, nos últimos meses de 2020, medo de comunistas (não consigo dar risadas em letras).

Esses medos, a indústria da medicina vai empolar e dar o nome para tratamento, a depressão. O remédio é individual, caro. Cabe perguntar: é mesmo depressão ou é uma sociedade ecológica e eticamente em frangalhos provocando um mal-estar existencial?

Em plena pandemia, como eu já escrevi em uma das colunas anteriores, não vejo medo na maioria da população brasileira. Quando olhamos a primeira cidade do mundo, Wuhan, na China, ficamos pelas TVs, olhando o medo e as mortes daqui. Depois a Itália, a Espanha. Quando o covid-19 chegou aqui, nosso estranhamento virou negação da doença. Com os mortos e sem lugar para os enterros, veio a negação dos corpos dos mortos. Se o caixão está fechado, estou sendo enganado. Não há mortos!

Com os neurônios a revirar, levanto algumas hipóteses sobre a falta de medo da pandemia. A primeira é que apenas perdemos do medo da morte quando morre um dos nossos familiares. Interessante é notar que a morte dos outros não diz respeito a mim. Ainda não chegamos, nesse processo, a evocar a dor dos semelhantes como próxima às nossas dores.

A segunda é que a negação do vírus, da doença chamada ironicamente de "gripezinha", da fácil contaminação e das mortes foi "engolida" pelas mudanças da sociedade que removeu a alma do mundo, como dizia o psicólogo James Hillman, e não nos deixa reconhecer que somos parte desse mesmo mundo. Alma aqui, é a perda das culturas, dos sentimentos, das artes, das tecnologias voltadas ao bem-estar, de emoções, morangos sem venenos, política energética sem lixo nuclear, ver crianças de rua sem condená-las pelo próprio abandono, fazer máscaras de prevenção ao covid-19 e leva-las às esquinas para doar a quem passa, ver a Amazônia sendo destruída e chorar pela dor dos bichos e das populações indígenas.

Alma é sentir. Sentir-se também parte do mundo de outras pessoas, de plantas e animais. Levar a cultura de seus antepassados mesmo modificando-a. Hibridar-se com os humanos de ontem e hoje.

A terceira hipótese é a da perda, cada dia mais rápida, dos sentimentos do mundo (lembra o poema de Carlos Drumond de Andrade) pelo excesso de informações, pelos ruídos dos noticiários, da frustração diária no trabalho, pela corrida ao ter mais do que ser (da classe média), pela exigência de ginásticas, de técnicas para um corpo jovem sempre, do produtivismo, placas de o "o melhor vendedor do bar", do primeiro lugar em "vendas". Hillman diz que a indústria relojeira suíça consumia Valium, antigo ansiolítico, desesperadamente. Hoje bebemos rivotril, lexotan, livojen e outros antidepressivos para também acomodar as amolações do dia a dia.

Essas irritações da vida cotidiana também acarretam outros caminhos. De minha chateação com o mundo, crio mensagens para outros chateados, as chamadas fake news ou falsas mensagens. Quero, com isso, dividir, minhas neuroses e as divido com outros "neurotiquinhos".

Mais fácil do que buscar a alma do mundo, eu saio na busca do coletivo do ódio, aquele que ignora as dores alheias e as suas para não sair da zona de conforto e da moralização. Nessa zona abundam slogans como "conecte-se", "exerça o controle", "brigue pelo que você pensa" (pensa?); tudo rápido e em grande quantidade. Em frases rápidas e curtas. Nesse percurso, as mortes por covid-19 não podem ser pensadas para além dos números e dos caixões lacrados enterrando corpos sem nome e sem parentes.

Pode ser que que as três hipóteses se emaranhem nesse processo diante da morte, diante da maior pandemia do mundo em que crise sanitária e crise humanitária se juntem. O medo se esconde em formas obscuras de sentimentos de ódio, preconceito, medidas ditatoriais, entre outros que, felizmente, também se esgotam em sentimento de impotência. Acordaremos, juntos em cemitérios cheios de túmulos, com tristezas transbordando e um medo de recomeçar. Bom. Recomeçar é interessante. Aí mudamos porque já não seremos mais os mesmos.


*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.