Alguma coisa está fora de ordem

Coluna publicada no JORNAL DO PORTO dia 22-5-2020

Alguma coisa está fora de ordem

Quando nos deparamos com uma aranha, a matamos. Assim se sucede com seus parentes, os besouros, as formigas, as borboletas e todas espécies de artrópodes que encontramos. Os anelídeos, grupo das minhocas, não fica atrás. Darwin intitulou as minhocas como as mais sublimes da face da Terra em seu último texto antes de falecer. No entanto, ninguém sabe, ninguém se preocupa.

Medo, nojo, insignificância, poder humano sobre os menores do planeta? As histórias destes nanicos animais fazem parte da história do planeta e dos humanos. Uma minhoca apareceu antes dos humanos no planeta. Talvez, 500 milhões de anos atrás um animal parecido com um alienígena tenha sido o tio das minhocas de hoje, diz o fóssil descoberto no Canadá. Surgiu antes dos dinossauros, na chamada explosão cambriana, uma das idades da Terra na qual tivemos uma grande explosão de vidas; o Big Bang da evolução.

Abelhas e outros insetos ganharam vida com as plantas com flores cerca de 300 milhões de anos, no período denominado de Mesozóico, a Idade Média dos animais e plantas. As aves têm sua história iniciada neste período como também os primeiros mamíferos do tamanho de pequenos ratos. Essa história é intitulada de Calendário Cósmico por Carl Sagan. Uma história de 15 bilhões de anos em que o homem nasce na última metade do dia último dia do calendário, dia 31 de dezembro. Todos as outras formas vivas de plantas, animais, bactérias e vírus vieram milhões de anos antes dos humanos.

Essas histórias de seres animais e plantas cresceu em redes. As plantas com os insetos. Depois as plantas com insetos, aves e mamíferos. Uma rede de coabitação, de dependências e de ajuda mútua. Uma orquídea habita uma árvore sem danificá-la, mas precisa de um inseto para sua polinização. As pétalas internas dessa orquídea parecem um inseto fêmea; um macho afoito corre lá e chacoalha a flor. Faz amor com a flor, polinizando-a. Darwin, em 1862, no livro A fecundação das orquídeas, nos mostrou essas estratégias de encanto das orquídeas com os insetos polinizadores. Perfumes, bioformas são modos de apresentação das plantas para os animais. Extinto um perfume, uma forma, é possível a extinção dos animais.

Essa é a beleza da evolução. Sua tragédia é a extinção passo a passo de uma parte colaboradora de sua história. Há aranhas do cerrado que, após uma queimada, contribuem para a regeneração do solo e das plantas. Mas ao matar um aracnídeo, extinguimos o outro lado. Sem aranhas, sem solo. Sem minhoca, sem solo fértil. Sem água, sem reprodução de sapos ou anfíbios. Sem anfíbios, sem margens de rios úmidas, sem aves, mais poluição com muitas espécies de pernilongos.

Quais os seres vivos com uma história de resistência e permanência no planeta Terra? As bactérias e vírus, cuja diversidade é enorme. Sem matas e sem florestas, os vírus e bactérias migram para os homens. É a nova história dos séculos XX e XXI. A história da migração dos "sem casa", entenda-se, sem florestas que migram para as cidades, locais de grande densidade animais humanos.

O covid-19, parente dos coronavírus de gripes anteriores, é um "animal" migrante. Ele não é visto pelas pessoas, mas viaja junto de avião, de navios, de barcos, ônibus, sobrevivendo, melhor e mais, a cada floresta destruída e queimada. Sobrevive bem nas lambanças de grandes fazendas de gado, de aves confinadas e de porcos apertados chorando de dor.

Chegamos no século XXI mostrando que somos potentes na destruição de pequenas aranhas, aves, mamíferos, mas somos vítimas de vírus invisíveis e com uma boa história de estratégias de sobrevivência.


*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.