De cortador de cana a multicampeão, Durval repassa carreira em tom de saudade

Após quase 20 anos de carreira, aos 39 anos, ídolo do Sport e ex-Santos anunciou a aposentadoria do futebol

Durval disputou a última temporada da carreira pelo Sport, em 2019 - Foto: Reprodução TV Globo

Durval disputou a última temporada da carreira pelo Sport, em 2019 - Foto: Reprodução TV Globo

Severino chega com o olhar apreensivo. Em silêncio, cruza os portões do estádio em que, sob a alcunha de Durval, escreveu história. Cumprimenta crianças pelo caminho e, sem deixar os tons de vermelho e preto de lado, presentes na camisa escolhida para vestir, ele pisa na Ilha do Retiro por mais uma vez. Ídolo no Sport e multicampeão pelo Santos, o zagueiro levou a carreira deixando clara a preferência pelas poucas palavras e distância dos holofotes. Porque falar da vida, sabe ele, nunca foi fácil. Mas dias após anunciar a aposentadoria, aos 39 anos, o Xerife se desarma. Fala. E entre a expressão fechada e o riso discreto, o zagueiro, pela primeira vez, deixa mostrar Severino. Aquele que, ainda adolescente, decidiu deixar o corte de cana, na cidade de Cruz do Espírito Santo, na Paraíba, para ser jogador.

"Tenho que me segurar, se não vou chorar. Eu tenho vergonha, sou vergonhoso, sou tímido. Meu choro geralmente pode não sair lágrima, mas por dentro eu choro. A minha emoção é exatamente isso."

Durval segue carregando a firmeza no rosto e a postura quieta que levou consigo no futebol. Mas a imagem criada em torno do jogador pouco condiz com quem o paraibano, de fato, é. Calado, mas não ríspido. Tímido, mas não grosso. E apesar da dureza associada ao zagueiro, após 20 anos de carreira, Severino fala de saudade.

"Meu pai trabalhava muito, ganhava pouco. Pela visão que eu tive vendo ele passar por aquilo, eu disse: "não é isso que vou querer para mim". Vou ver outras coisas. Gostava de jogar futebol desde moleque, então decidi: vou ser jogador de futebol."

Ainda em Cruz do Espírito Santo, o zagueiro, que na época atuava como meia, disputou as primeiras partidas, por um time chamado Flamengo de São Felipe, cujos jogos aconteciam em um campinho próximo ao sítio onde Durval morava. Foi quando, ainda em 1995, chamou atenção de um grupo de observadores locais e recebeu um convite para unir-se à equipe do Confiança, no município de Sapé, a quase 20 km de casa. Ali, deu os primeiros passos para montar sua trajetória no futebol, ainda pelas categorias de base.

"Lá na minha cidade, o pessoal me viu jogando na base e a primeira oportunidade que eu tive, agarrei e disse: "É agora". Queria dar uma vida melhor para meus familiares, meu pai principalmente, minha mãe."

Renato Durval, pai de Durval, na Ilha do Retiro — Foto: Elton de Castro
Renato Durval, pai de Durval, na Ilha do Retiro — Foto: Elton de Castro

Desde aquela época, principalmente pela intensidade que levava à campo, preocupava à mãe com a possibilidade de cair e se machucar. Ouvia as reclamações, os medos, as angústias, mas era nos braços de dona Maria que o zagueiro encontrava refúgio. Seja em período de férias ou mesmo para comemoração de títulos, como aconteceu quando campeão da Libertadores de 2011, com o Santos, Durval sempre refez o caminho de volta para casa. Um carinho que, há dois anos, transformou-se em saudade. Após o zagueiro perdê-la, em 2018, e afastar-se do futebol por quase um mês.

"Sempre vou estar com saudade dela, lembrando dela. Dona maria, quando chegava em casa, acho que a primeira coisa que ela me dava era um abraço e um beijo. Toda vez. Independentemente da hora que eu chegasse, meia-noite, 1h, ela sempre estava me esperando. Depois que eu perdi minha mãe, acho que o mundo desaba. A estrutura da família acho que fez a gente se erguer, mas não esqueci."

Severino fica em silêncio. Perde o olhar no espaço vazio por alguns segundos. Sente. Em sinal de incômodo, muda a posição na cadeira em que está sentado, no gramado da Ilha do Retiro, e retoma ao presente mudando de assunto.

Durval relembra relação com a mãe — Foto: Reprodução TV Globo
Durval relembra relação com a mãe — Foto: Reprodução TV Globo

Sem voz para falar da perda materna, Durval busca o tema que lhe traz segurança: a carreira. A distância de casa para Durval aumentou mesmo quatro anos depois de iniciar no Confiança de Sapé. Pois, em 1999, o zagueiro transferiu-se ao Unibol, de Pernambuco, pelo qual disputou sua primeira partida como profissional. Desde então, passou por Botafogo-PB e Brasiliense, antes de assinar com o Athletico, em 2005. Pelo clube paranaense, o jogador disputou sua primeira final de Libertadores. Mas terminou o torneio como vice-campeão, caindo para o São Paulo num confronto em que marcou gol contra na primeira partida, dando o empate ao Tricolor, que no duelo de volta, goleou por 4 a 0. Seis anos depois, pelo Santos, a história voltaria a se repetir. Mas não sob o mesmo roteiro, porque no Peixe o zagueiro se tornaria campeão.

"Pela equipe do Santos não passou na minha cabeça que a história fosse ser a mesma. O que marcou mais foi o do Athletico, porque apesar de que eu não tive culpa, caiu tudo em cima de mim, então marcou mais."

A fala trava na garganta. Por mais uma vez, Durval escolhe voltar às poucas palavras. Confere o relógio no pulso e observa as câmeras ao redor, assim como aconteceu por mais de uma vez ao longo de quase duas horas de conversa. De volta ao palco em que se fez herói, o Xerife caminha em silêncio pelo gramado.

Contratado pela primeira vez em 2006, para a disputa do Campeonato Pernambucano, Durval chegou ao Sport como desconhecido, para dividir os gramados com jogadores como Magrão e Fumagalli. Titular não só no Estadual, como também na Série B daquele ano, ele ganhou a confiança da torcida. E carregando o Leão no peito, conquistou o título local por quatro anos seguidos, de 2006 a 2009. Mas em 2008, quando campeão da Copa do Brasil, vencendo o Corinthians do técnico Mano Menezes na final, que o zagueiro deixou marcado o nome na história do Rubro-negro.

"Na ilha do Retiro foi onde eu vivi a maior alegria da minha vida. A maior conquista foi a Libertadores (pelo Santos), mas a Copa do Brasil foi mais emocionante. No Santos era difícil a gente perder aquele título. Aqui pelo Sport, nosso caminho, trajetória, os times que enfrentamos, foi complicado. Mas aquele time de 2008 era praticamente imbatível aqui na Ilha."

Sport campeão copa do brasil 2008 — Foto: Jose Otavio de Souza/GLOBOESPORTE.COM
Sport campeão copa do brasil 2008 — Foto: Jose Otavio de Souza/GLOBOESPORTE.COM

Severino, mais uma vez, deixa o olhar passear sem pressa. Contempla as arquibancadas do estádio. Sob o mormaço que paira na cidade do Recife, em Pernambuco, em plena manhã de sexta-feira, refaz o caminho até a entrada da grande área no campo. Dali, impôs a autoridade de capitão, colocando Carlinhos Bala e Kássio para trás, e assumindo a responsabilidade da cobrança de falta que seria a chance determinante para a classificação do Sport, que ganhava do Internacional por 2 a 1, com gols de Leandro Machado e Roger. Aos 33 minutos do segundo tempo, Durval acertou uma bomba no ângulo direito, alcançando o placar que garantiu a vaga. Quase onze anos depois, o zagueiro encara a barra vazia no estádio. O sistema de som na Ilha do Retiro reproduz a narração do antológico gol e Severino suspira, apontando os braços em sinal de arrepio.

"Só faz as lágrimas, mas sou durão, graças a Deus sou forte. Mas é emocionante. Eu vi nesse exato momento, no mesmo local, onde eu bati aquela falta, e ouvindo essa narração, então o coração vai a mil. Me segurei. Eu me seguro, né."

Referência no time naquele ano, Durval eternizaria a imagem da taça empunhada sob o palco armado próximo ao que, hoje, são a arquibancada visitante e cadeiras especiais na Ilha do Retiro. Eram quase 35 mil pessoas naquela noite, dia 11 de junho de 2008. E após deixar para trás Imperatriz-MA, Brasiliense, Palmeiras, Internacional e Vasco, o Rubro-negro bordava a segunda estrela dourada na camisa ao vencer o Corinthians por 2 a 0 e reverter o 3 a 1 sofrido no Morumbi, em São Paulo. Parado no mesmo local, ainda que dessa vez sem palco armado, o zagueiro repete o gesto por mais uma vez. Sozinho, passa o olhar por entre a estrutura metálica que fez do Sport o maior do Brasil por um dia.

"Saudade ein, ô. Vem na cabeça eu levantando ela aqui, do mesmo jeitinho. A Ilha lotada, não cabia ninguém, festa bonita, né. Isso aqui é para o resto da vida. Não tem dinheiro no mundo que pague uma conquista assim. Eu tenho camisa, tenho faixa, tudo guardado em casa."

Durval levanta a taça da Copa do Brasil mais uma vez — Foto: Camila Alves
Durval levanta a taça da Copa do Brasil mais uma vez — Foto: Camila Alves

Dois anos depois do título, Durval deixaria o Nordeste mais uma vez, acertando com o Santos. O zagueiro suaviza o tom de voz e assume uma postura de orgulho, se reerguendo na cadeira. Sabe que, em quatro anos pelo Peixe, alçou a carreira ao auge quando campeão da Libertadores de 2011 e vice no Mundial de Clubes, além de ter conquistado a primeira convocação e título pela Seleção Brasileira, ao o Superclássico das Américas, em 2012.

"Fui para lá com a cabeça bem tranquila, afim de me destacar. Cheguei e não tive dúvida nenhuma, quando comecei a treinar, quando comecei a ver o primeiro jogo, eu disse: agora é comigo. Não perco minha vaga para ninguém."

Durval defendeu o Santos nas temporadas de 2010 a 2013 — Foto: Ricardo Saibun/Divulgação Santos FC
Durval defendeu o Santos nas temporadas de 2010 a 2013 — Foto: Ricardo Saibun/Divulgação Santos FC


Insatisfeito ao perder espaço no Santos, em 2014, o zagueiro voltou ao lugar que chamaria de casa por mais quatro anos. Ao clube pelo qual escolheu torcer e pelo qual escreveria os últimos capítulos da sua história no futebol. Um ano após deixar o Sport, ele intercala as palavras com o silêncio que, por vezes, machuca. Aperta a mão no joelho direito, e volta a falar.

- Tenho 39 anos e também tenho um probleminha no joelho. Para jogar em alto nível não aguento mais. Mas encerro feliz. Com a sensação de dever cumprido. Primeiro vou dar uma acalmada, depois vou ver o que vou fazer. Tenho em mente agenciar, principalmente os moleques. Mas não é coisa definida, estou pensando nisso. Agora, a vida continua fora dos gramados. Mais solto, talvez um pouco mais leve.

Severino suspira. Pela primeira vez, após quase 20 anos de carreira, assume a leveza que carrega no olhar. Deixa o esperado sorriso nos pequenos detalhes. Nos últimos minutos sob o gramado da Ilha, ele pede uma foto por trás do escudo na beira do campo. Quer guardar de lembrança. Observa ao redor, confere o relógio por mais uma vez, e agradece. Quase três décadas depois, Durval volta a conversar com o Severino de 16 anos. Aquele que, ainda adolescente, teve a firmeza de deixar a vida no canavial para trás, em busca da realização de um sonho.

"Eu diria a ele que faria tudo de novo. Daria qualquer coisa para recomeçar, viver tudo de novo. Entrar no estádio, lotado, a torcida gritando seu nome. Principalmente numa decisão, você sendo campeão. Não tem dinheiro no mundo que pague essa sensação. "

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