Show 'Joia', ode poética a disco de Caetano Veloso, não é qualquer coisa em cena

Mauro Ferreira / G1

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Jussara Silveira e Rodrigo Faria cantam o repertório do álbum experimental lançado pelo artista em 1975. Rodrigo Faria e Jussara Silveira no show 'Joia'

Resenha de show

Título: Joia

Artistas: Jussara Silveira, Rodrigo Faria, Lanh Lan e Mig Martins

Local: Teatro PetroRio das Artes (Rio de Janeiro, RJ)

Data: 24 de janeiro de 2020

Cotação: * * * 1/2

? A rejeição extrema ao álbum Araçá azul (1973) poderia ter motivado Caetano Veloso a tirar os pés do terreno da experimentação. Sem perder o gosto pela dissonância, o artista apresentou em abril de 1975 outro álbum, Joia, pautado pela expansão da linguagem dos sons e ritmos com a junção de música e poesia.

Joia veio ao mundo acompanhado de um disco que lhe serviu de contraponto, Qualquer coisa, álbum pautado por estruturas musicais mais convencionais e, por isso, mais sedutoras para o ouvinte.

Joia simbolizou o fino acabamento artesanal da música que ignorava o tom das paradas populares com o verniz da intelectualidade. Qualquer coisa foi a bijuteria que reluzia sobre o brilho pop de canções mais radiofônicas. Em ambos, havia músicas dos Beatles no repertório, sendo três em Qualquer coisa e uma, Help (John Lennon e Paul McCartney, 1965), no Joia.

Ambos os álbuns completam 45 anos em 2020, resistindo bem ao tempo. Joia gerou em 2018 show-tributo que também resiste em cena, tendo estreia na cidade de São Paulo (SP) programada para a próxima sexta-feira, 31 de janeiro, na Casa de Francisca.

Rodrigo Faria e Jussara Silveira cantam afetuosamente em uníssono no show 'Joia'

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Idealizado por Tyrone Medeiros com Rodrigo Faria, cantor que divide a interpretação das músicas com a extraordinária Jussara Silveira, o show se mantém em forma após a morte do violonista Chico Oliveira (1986 – 2000).

Substituído por Mig Martins a partir da volta do show à cena carioca em 24 de janeiro, em apresentação feita no Teatro PetroRio das Artes, Chico Oliveira foi celebrado no bis dessa apresentação com a inclusão de música de autoria do artista, Sem fronteiras (2017).

Por ter sido feita somente no arremate do bis, a justa homenagem ao integrante do elenco original do show manteve intacta a arquitetura poético-musical do show Joia. Bem alinhavada por Tyrone Medeiros, a costura do roteiro é fiel ao universo do álbum de Caetano Veloso.

Capa do álbum 'Joia', de Caetano Veloso

Reprodução

Ao extrapolar o repertório por vezes atonal do disco Joia, composto por 13 músicas, o show propõe conexões inteligentes que contribuem para evidenciar a organicidade do álbum de Caetano Veloso.

Essa inteligência já salta aos ouvidos na abertura do show, onde se ouve áudio com trecho da gravação da música De palavra em palavra (Caetano Veloso, 1973) no disco Araçá azul em link sagaz que aproxima dois álbuns dissonantes em que o cantor e compositor baiano buscou a experiência.

Feita na voz da percussionista Lan Lanh, integrante do afinado quarteto do show, a citação de verso de Língua (Caetano Veloso, 1984) antes do samba Escapulário (Caetano Veloso sobre poema de Oswald de Andrade) é outra amostra da sagacidade do roteiro.

Rodrigo Faria e Jussara Silveira alternam solos e duetos no inteligente roteiro do show 'Joia'

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Na poesia de cada dia, o poema Branco (Haroldo de Campos, 1959) tem justificada a presença no show Joia por ter inspirado Caetano Veloso a compor Lua lua lua lua, uma das canções mais belas do disco Joia, ponto fora da curva pela estrutura tonal.

Lançada por Gal Costa no álbum Cantar (1974), a melodiosa Lua lua lua lua ilumina no show Joia a harmonia que rege a junção em uníssono das vozes de Jussara Silveira e Rodrigo Faria, sobretudo nessa canção e no Canto do povo de um lugar (Caetano Veloso, 1975), outra música redonda do álbum Joia.

Feito com vivacidade que contagia a plateia, o dueto dos cantores na composição nordestina Na asa do vento (João do Vale e Luiz Vieira, 1956) é outro momento especial do show. Em contrapartida, o pedido de socorro de Help (John Lennon e Paul McCartney, 1965) poucas vezes soou tão anêmico.

Jussara Silveira brilha ao solar 'Olho d'água' no show 'Joia'

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Em que pese a afinação da dupla, Jussara sobressai naturalmente em cena por ser uma das maiores cantoras do Brasil, qualidade reiterada nos solos da intérprete em Olho d'água (Caetano Veloso e Waly Salomão, 1992) – música-título de um dos álbuns menos ouvidos de Maria Bethânia – e em Pássaro proibido (1976), parceria de Caetano com Bethânia que também deu nome a um disco da cantora baiana.

O voo de Jussara em Pássaro proibido é sucedido conceitualmente no roteiro pelos solos de Rodrigo Faria em Asa (Caetano Veloso, 1975) e A grande borboleta (Caetano Veloso, 1977), música esquecida do álbum Bicho (1977), lançado por Caetano dois anos após Joia.

O show Joia consegue evocar a atmosfera poético-musical do disco, por mais que o quarteto não reproduza com absoluta fidelidade os sons e ritmos do álbum Joia – proeza tecnicamente impossível até porque Caetano é intérprete assombroso e também porque é irreproduzível o toque do violão de Gilberto Gil em Minha mulher (Caetano Veloso, 1975), canção de toque árabe que abre o disco e o show.

Justamente por evocar o espírito ora calmo ora inquieto do disco de Caetano Veloso, o show Joia não é qualquer coisa em cena.

Rodrigo Faria e Jussara Silveira se afinam nos 23 números do show 'Joia'

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? Eis o roteiro seguido em 24 de janeiro de 2020 por Jussara Silveira, Rodrigo Faria, Lanh Lan e Mig Martins na apresentação do show Joia no Teatro PetroRio das Artes, na cidade do Rio de Janeiro (RJ):

1. De palavra em palavra (Caetano Veloso, 1973) – trecho do áudio do álbum Araçá azul (1973)

2. Minha mulher (Caetano Veloso, 1975)

3. Help (John Lennon e Paul McCartney, 1965)

4. Na asa do vento (João do Vale e Luiz Vieira, 1956)

5. Pelos olhos (Caetano Veloso, 1975)

6. Branco (Haroldo de Campos, 1959) – poema

7. Lua, lua, lua, lua (Caetano Veloso, 1974)

8. Queda d'água (Caetano Veloso, 1979)

9. Olho d'água (Caetano Veloso e Waly Salomão, 1992)

10. Guá (Caetano Veloso e Perinho Albuquerque, 1975)

11. Gravidade (Caetano Veloso, 1975)

12. Introdução: Asa de Akhmátova (poema Asa, de Ana Akhmátova, 1911, em tradução de Augusto de Campos, 2006) – poema na voz de André Vallias

13. Pássaro proibido (Caetano Veloso e Maria Bethânia, 1976)

14. Asa (Caetano Veloso, 1975)

15. A grande borboleta (Caetano Veloso, 1977)

16. Canto do povo de um lugar (Caetano Veloso, 1975)

17. Tudo, tudo, tudo (Caetano Veloso, 1975)

18. Pipoca moderna (Sebastião Biano e Caetano Veloso, 1972)

19. Joia (Caetano Veloso, 1975)

20. Língua (Caetano Veloso, 1984) – citação do verso "Será que ele está no Pão de Açúcar? " na voz de Lanh Lan /

21. Escapulário (Caetano Veloso sobre poema de Oswald de Andrade, 1975)

Bis:

22. Lua cheia (Paulo Costta a partir de poesia de Mabel Velloso, 2015) – com citação de Genipapo absoluto (Caetano Veloso, 1989)

23. Sem fronteiras (Chico Oliveira, 2016)