E a água?

E a água?

Sequência de fotos da bica da favela Santa Marta, 1978

Luiz Alphonsus

"Lata d'água na cabeça

Lá vai Maria, lá vai Maria

Sobe o morro e não se cansa

Pela mão leva a criança

Lá vai Maria

Lata d'água na cabeça

Lá vai Maria, lá vai Maria

Sobe o morro e não se cansa

Pela mão leva a criança

Lá vai Maria

Maria lava roupa lá no alto

Lutando pelo pão de cada dia

Sonhando com a vida do asfalto

Que acaba onde o morro principia"

(Marchinha do Carnaval de 1955 de Luiz Antonio e Jota Jr.)

Carlos Costa Ribeiro, meu mestre em questões ambientais, me dizia que a água do Rio de Janeiro era tão bem tratada que não havia necessidade de filtrá-la. Podia-se beber direto da bica. Afirmava isso com um ar sério e sempre me acalmava quando eu fazia mil manobras para esterilizar os objetos e a água para o banho do meu filho nascido prematuro. Suas palavras me tranquilizavam momentaneamente, mas logo depois, desconfiada, começava o longo processo de higienização. Lá se vão quarenta anos. O bebê é hoje um homem feito.

Andamos todos amalucados com tantas informações que chegam pelas inúmeras redes. Pessoas alertando para os coliformes fecais e outros falando até em escherichia coli em quantidades anormais na água que chega às torneiras. Médicos e enfermeiras atestam o grande aumento de pessoas com infeção intestinal e vômitos que atribuem à água que bebem. O verão escaldante não ajuda, o pânico se alastra e esvazia as prateleiras dos supermercados de água mineral, para aqueles que o bolso permite. A maioria do povo se vira como pode.

As autoridades custaram a se manifestar e só vieram a público cerca de quinze dias depois do primeiro alerta feito por um cliente da Cedae. Desde o começo disseram em nota que não era nada, não era nada, apenas algas, as agora famosas geosminas, produzidas pela poluição dos rios que chegam à bacia do Guandu e desembocam na estação de tratamento. Enquanto isso, as famosas fake news, os populares boatos e o disse-que-me-disse correm à solta deixando mães aflitas e pessoas enojadas diante da turbidez da água barrenta e mal cheirosa.

Que saudade do Carlos! Sei que não posso trazê-lo de volta para nosso convívio e mesmo assim, nos últimos dias, tenho me pegado, volta e meia, quase ligando para ele. O que Carlos diria sobre a água turva e mal cheirosa que está sendo oferecida aos cidadãos do Rio de Janeiro?

Certamente, desta vez seria mais cauteloso e sugeriria esperar exames mais acurados, mas ainda assim, acho, confiaria na capacidade dos técnicos de solucionar rapidamente os problemas apresentados pela Companhia que desde 1955, passando por muitas ampliações, abastece hoje nove milhões de pessoas e, como informa sua página na internet, na vazão de 43 mil litros por segundo para Nilópolis, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Belford Roxo, São João de Meriti, Itaguaí, Queimados e Rio de Janeiro – um record no Guinness Book. Enquanto os exames não chegam, sofremos com os boatos, as teorias da conspiração e o medo de sermos contaminados.

Maria, faz tempo, não carrega mais a lata d"água na cabeça. Favela e asfalto agora sofrem dos mesmos males produzidos por governantes selvagens e pela incúria dos responsáveis pelo saneamento básico. Há anos se fala na importância de cuidar dos rios que chegam à bacia do rio Guandu. Nada foi feito, transformando dessa forma a estação de tratamento, nas palavras do biólogo Mário Moscatelli, em uma estação de tratamento de esgoto. Segundo o especialista, para a massa de fezes que chega ao Guandu se converter em água potável tem de se fazer uma verdadeira alquimia com mil filtragens e muita química.

No dia de São Sebastião, dia 20 de janeiro, padroeiro do Rio de Janeiro, certamente foram muitos os pedidos para que ele nos socorra. Fato é que nas próximas eleições para prefeito devem ser cobrados planos de saneamento que dependem mais da vontade política do que de verbas. O Rio de Janeiro tem jeito, mas precisamos nos mobilizar.