A indiferença à vida e existência

Coluna publicada no JORNAL DO PORTO dia 25-6-2021

A indiferença à vida e existência

Escrevo este texto no final da terça-feira. Assisti a boa parte do depoimento de Osmar Terra, na CPI da pandemia, hoje. Voltou-me a preocupação mais antiga (desde 2016 com o golpe contra a presidenta) em que falar tanto faz. A mim parece que os substantivos não têm substâncias, nem os adjetivos qualificam, nem os verbos conjugam. Imaginem vocês uma professora de Metodologia Científica, escrita e epistemologia das ciências que fica atenta a toda e qualquer palavra. Uma pessoa que que em vez de abelha na flor vê poesia da natureza. Fiquei muito amargurada. A impossibilidade de trocar pensamentos e falar me pareceu a morte.

Há poucos dias tive contato com uma palestra feita pela Casa do Saber, pela Suzie Piza, filósofa e professora da Universidade Federal do ABC, que é maravilhosa. É sobre o pensar e eu acrescento, falar, tecer a vida com linguagem e ser mesmo uma ou várias linguagens.

Pensar não é natural. Pensar não é uma passividade. Pensar não é natural. Pensar é ser afetado por algo externo, algo que lhe atravessa, algo que lhe obrigue a pensar. Pensar é algo que acontece quando uma força lhe obriga. Quando você tem um incômodo, você pensa. É isso que diz a professora Suzie Piva.

Todos temos atividade mental, mas nem todos são afetados, atravessados por alg. A sociedade nos oferece milhões de coisas para não pensarmos; a televisão, os celulares, as redes sociais. Pensar também requer estar aberto para as alteridades, para o outro, para as afetações. Mas, isso não é fácil. Pensar é contra a natureza, você precisa entrar em atividade, em fazer exercícios para escapar da alienação.

Ligando meu mal-estar à fala da professora, compreendi a fuga das palavras, a negação do pensamento e a repetição de frases feitas.

Vendo, hoje, o deputado Osmar Terra na CPI da pandemia, eu entendi melhor meu sentimento de perda. O deputado sentou-se à mesa de lado, olhando o presidente da CPI e o relator com a mão no rosto. Um ar de quem estava enfadado antes de falar. Um jeito de deboche. O que ouvimos durante horas foi o "mais do mesmo" como dizia uma colega professora, uma frase que eu não gostava.

Pego em ideias repetitivas, o deputado voltava atrás, depois avançava na mesma ideia anterior. Um tipo de carrinho dos antigos parques de diversão que vai e volta, tromba, volta e tromba outra vez. Ao ver os vídeos em que falou pró-cloroquina, ele disse que "na época" (início de 2020), era a favor porque não conhecia o vírus. Mas continuou a favor da cloroquina quando viu que não era um vírus como os anteriores das gripes. Disse que fez cálculos, mas não disse qual seu método de calcular, mesmo sendo inquirido. Não é somente uma estratégia, mas uma recusa em pensar. Recusa em aceitar o inevitável: mataram muitas pessoas com cloroquina. Claro, nenhum homicida declararia isso, mas admitir que a cloroquina não era propícia à Covid-19 seria interessante aos cidadãos deste país. Uma informação sanitária, uma vez que ninguém até hoje, no Brasil, sabe bem o que é o vírus e como atua no organismo humano.

Outro participante do governo federal, talvez o mais funesto deles, o ministro da economia, disse que a classe média come muito e joga muita comida fora. Então, tirou de sua cartola a proposta do ministério (dele, o deuszinho) de dar os restos dessa comida aos pobres. Subi a serra e cai.

Vocês assistiram ao filme O Poço? O filme é de 2020, do diretor Galder Gaztelu-Urrutia e eu o vi na Netflix. Quando assisti achei-o previsível. Metáfora das sociedades desiguais, mas dou o braço a torcer. É uma excelente metáfora. Mal eu sabia que o ministro tinha essa ideia na maleta de técnico em economia aprendida no Chile.

O poço é uma prisão que tem 48 níveis. Quando recebem comida, o nível zero recebe um banquete. Dois presos por cela se jogam a comer porque o tempo é pequeno. Os restos descem a cada nível e nós somos presenteados por uma monstruosidade até os últimos níveis onde a insanidade reina porque a fome é grande. Veremos tudo, canibalismo, brutalidades e horrores.

Certamente o ministro não viu esse filme. Se o viu, aplicou a crueldade que é destinar restos de banquetes àqueles submetidos a infortúnios. Como no filme O Poço, o ministro desconhece (ou não se importa nada mesmo) com as condições sanitárias de doação.

Algo mais racional seria ampliar os restaurantes com comida a preço mínimo ou de graça com as condições sanitárias adequadas para não termos surtos de gripes, diarreias e até mesmo de Covid-19.

O ministro não pensa. Ele aplica as regras mais calhordas desde a fundação deste país pelos portugueses. Não pensa no século XXI, é uma alma cruel de 1500 soçobrando na política que muitos chamam de neoliberal. Eu nomeio-a de capitalismo de alto risco, onde matar os mais pobres e desajustados ao sistema devem, como no filme O Poço, lutar e morrer. Com fome.

Dois senhores da atual desgovernança. Ou matança a céu aberto.

*Marta Bellini


*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.