Alguma coisa está fora de ordem

Coluna publicada no JORNAL DO PORTO dia 23-4-2021

Alguma coisa está fora de ordem

O olhar da pandemia pode ser tomado na ótica dos sofrimentos psicológicos que a pandemia nos impõe no dia a dia. Esta semana li e ouvi os vídeos de Joel Birman, psicanalista carioca, para compreender essa passagem por uma das piores pandemias do planeta até hoje. O responsável não é o vírus; são nossos governos e sua agenda econômica onde não figuramos como cidadãos, nem humanos, nem brasileiros. Nossa condição é a de animais empurrando-nos na fila da esperança, a da vacina.

Nossa condição na pandemia passa por vários percursos; um é a do desalento humano, do abandono nosso pelos governos; o outro, é a sensação de que tudo que falamos não é suficiente para retratar nossa indignação. Todas as interpretações do governo federal e dos estaduais chegando até os governos municipais parecem desconexos. Ninguém nos ouve, ou nos respondem; apenas vemos os esforços de dois institutos de pesquisa para enviar vacinas, o Butantã e a Fiocruz. E uma fila enorme de pessoas de todas as idades esperando sua vez para se imunizar.

Há um mal-estar no Brasil, para usar a expressão psicanalítica. Mal-estar que aumenta as depressões, aumenta o desespero, a violência, a criminalidade. Estamos bem mais tristes no país.

Falamos em fascismo. Falamos em três mil mortos por dia sem nenhuma comoção dos políticos. O congresso e o senado andam aos passos de tartarugas aleijadas. Brigam por suas emendas parlamentares tirando dinheiro da previdência, das carreiras de servidores públicos e preparam um golpe nos salários dos aposentados.

Falamos em abandono dos pobres para ter acesso às vacinas quando empresários acabam de ter o direito a comprar vacinas e ter desconto no Imposto de Renda. Então, seremos nós próprios a pagar essas vacinas privadas. Assim, nus, vemos o ministro da economia colaborar com empresários na compra grátis de vacinas rasgando o SUS público. Reduzindo o brasileiro a um animal pronto a ser abatido sem nenhuma piedade enquanto outros poderão ser imunizados. O ato fascista, para usar uma metáfora dura, é quando temos o cão morto sem compaixão.

Joel Birman nos traduz esse caminho na pandemia. Estamos no capitalismo de alto risco onde até mesmo vacinas nos são negadas. No capitalismo de alto risco vigora o Estado mínimo que sempre vigorou no Brasil. Para os fundadores do Estado mínimo, o Estado atrapalha. Reduz-se, nesse Estado, o espaço público.

A antiga ideia de soberania ligada ao Estado vai desaparecer. Com os acordos ultraliberais com os EUA (acordo de Washington, anos 90) acaba-se a governabilidade, e instala-se a governança com um Estado cheio de experts, coachs, especialistas que são mais gerentes do Estado mínimo do que políticos que arquitetam e trabalham para o espaço público.

Nesse percurso, esvaziam-se sindicatos e associações que lutam para a manutenção dos trabalhadores e do trabalho. Isso caracteriza a sociedade de risco onde nenhum de nós tem amparo pessoal ou de grupo, cada um de nós é jogado ao Deus dará.

Entendi, com Birman, que é por isso que as mortes não chegam aos olhos e ouvidos dos deputados, senadores, vereadores (com raras exceções temos ainda bons políticos). Esses senhores e senhoras estão trabalhando para a agenda do capitalismo de alto risco. Não ouvem o povo. O povo atrapalha.

Por outro lado, sobram as alternativas de mercado. A medicalização é uma delas. Está deprimido, vão-se os antidepressivos. Estamos numa pandemia, tomem cloroquina. Estão com estresse, tomem vitaminas. Práticas das fábricas de remédios. Estão sem comida? Sobram as práticas de favor. Pedem-se aos ricos que deem comida. Não se aumenta salários; isto é, contra o Estado de alto risco. É o pandemônio. Vírus com negação social da vida pelos próprios representantes políticos do país.

O mal-estar na sociedade se apresenta, diz Birman, chama a atenção. Nos relatos dos psicanalistas, diz Birman, vemos o que nos esmagam: o corpo se rebelando (excesso de trabalho, falta de descanso); a redução das formas de pensar e falar. Diminuímos as críticas, incorporamos as bobagens das TVs, ficamos curiosos pelas vidas de artistas, repetimos os apresentadores de notícias. Um resultado disso foi veiculado nos jornais da semana passada. O Quociente intelectual dos jovens do mundo vem diminuindo desde a década de 1990.

Para os governantes – cujo QI – é também questionável, não há problema. Festejam. Nós morremos. O povo atrapalha.


*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.