Aos nossos mortos da Covid-19

Coluna publicada no JORNAL DO PORTO dia 1-4-2021

Aos nossos mortos da Covid-19

*Marta Bellini

Essa última semana de março remonta os 57 anos da ditadura brasileira, 31 de março. Os mortos por tortura ou desaparecidos do golpe de 1964, lembram a tragédia de Antígona, de Sófocles. Antígona, não podendo enterrar o irmão, Polinice, por ordem de Creonte, desonra para os gregos, se rebela contra esse costume e o sepulta. É morta por ordem de Creonte por desobedecê-lo.

Os mortos da ditadura, muitos ainda, não foram encontrados, nem sepultados mantendo nos parentes o sentimento de não finalização da a e de impedimento de homenagem a um corpo que tem uma história de emoções e afetos. Essa despedida é também a manutenção da memória do morto.

Os mortos pela Covid-19 também não podem ser sepultados pelos parentes. A condição sanitária não o permite. Do outro lado, a homenagem fica mutilada; os mortos ficam à deriva dos símbolos e das emoções, como os desaparecidos da ditadura.

Na minha cabeça todas as instituições, igrejas, escolas, mercados, universidades, padarias, lojas de roupas, de sapatos etc deveriam fazer uma homenagem diária de seus mortos. Listas com nomes, fotografias e estórias de seus antigos vivos. Fiz essa sugestão a um grupo de pessoas; aceitaram sem os nomes. Depois vi que os nossos mortos, professores, foram homenageados em um site. Ainda gostaria de homenagens em cartazes e faixas tremulando nas ruas, portas e muros da cidade.

Em meu bairro morreu o "seo" AR. Ele desapareceu de nossas vidas. De nossas ruas. Não vamos mais ver aquele homem solícito com os vizinhos que construiu sua casa em várias etapas, em anos; que limpava os nossos quintais; ajudava a esposa a vender tapioca; que tinha filhos e filhas e era dono de uma serenidade nas adversidades de sua sobrevivência.

Uma amiga me ligou e deu a notícia da morte de AR. E eu fiquei suspensa no dia, na hora, nas memórias e na surpresa. Ele desapareceu. Eu não o vi, nem o verei mais. E sua esposa? E seus filhos?

Nosso colega professor JO também. Saiu da vida com rapidez, enterrado quase sem ninguém para homenageá-lo, apenas seu marido sozinho chorando na porta do velório. Como seu companheiro vai sobreviver agora, pensei? Veio de outro lugar, conhecerá pessoas que o ajudem? E nós, como ficamos? Vamos esperá-lo nos eventos? Ele não virá.

Assim também foram dessa vida a amiga DE "seo" AFO; MAR; cada um deles com uma história dentro de outra história coletiva da escola, da cidade, das outras pessoas. Em 1995, na Costa Rica, há apenas dois dias, fui à Missa de Sétimo Dia de um professor falecido em um acidente de avião. Depois da celebração religiosa, os outros professores fizeram uma roda com comida, fotografias e estórias da vida do morto. É um costume guatemalteco. Homenagear o morto trazendo a história dos afetos e das emoções.

Eu penso nisso quando pudermos nos encontrar. Saudar os nossos mortos numa festa de afetos e memória.

*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.