Alguma coisa está fora de ordem

Coluna publicada no JORNAL DO PORTO dia 26-3-2021

Alguma coisa está fora de ordem

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A carta da elite brasileira ao planalto, mais do mesmo

A elite empresarial e economistas importantes no Brasil – depois de um ano de epidemias – resolveram se indignar com o "descaso" do planalto e desceram às planícies; escreveram uma Carta Aberta com 500 signatários, alguns ilustres sócios do clube do Dr Mercado.

Depois de chegarmos a duas mil mortes por dia durante as primeiras semanas de março, ontem, dia 23, atingimos 3.254 mortes, é que empresários, economistas, banqueiros se manifestam. É muita mão de obra morrendo em um governo descontrolado.

É uma Carta inofensiva. Segundo um dos signatários, em entrevista, segunda-feira, à Globonews, ex-ministro da economia, no ano passado não havia consenso entre signatários, mas agora, em março de 2021, a pandemia está totalmente fora de qualquer controle. Os quinhentos signatários precisaram ver o fundo do poço de seu candidato eleito, ou seja, chegar aos trezentos mil mortos para se preocuparem com a população da qual extraem riquezas.

A carta prescreve a distância social, o uso de máscaras e vacinas. Essas mesmas estratégias são defendidas desde o início da pandemia em 2020, centenas de epidemiologistas, infectologistas, médicos da saúde pública falam há um ano. Neste quesito, a carta está apenas repetindo as mesmas recomendações dos médicos, enfermeiros e alguns governadores em 2020.

Vou pontuar outras questões da Carta Aberta.

1 – Trata-se de uma carta limpa, chapa branca. Não é incisiva, nem por isso é elegante. É uma carta "isca", diz o óbvio. O presidente pode lê-la sem surtar.

2 – Quando analisamos as intenções de um texto podemos recorrer aos verbos usados. Como também observou uma colega expert em linguagem, Isabel Rebelo Roque, há o uso em certa quantidade de "deveria", "poderia", que sustentam argumentos de prescrição. Assim como um médico prescreve um tratamento dizendo: " o senhor deveria tomar esse remédio". "Você poderia fazer uma dieta". O uso de verbos no pretérito imperfeito do indicativo, nesse caso, não é contundente. É frouxo.

Também prescrevem o suavizante uso do "É urgente", "É necessário".

3 – O uso de conjunções como "ademais" também suavizam a carta. O advérbio "entretanto", as expressões "ora, veja" seguem a via falar com delicadeza.

No meio das expressões suaves e argumentos prescritivos, encontramos o osso do Dr Mercado:

Olhem esses dois parágrafos da Carta Aberta:

Dentre a combinação de medidas possíveis, a questão do funcionamento das escolas merece atenção especial. Há estudos mostrando que não há correlação entre aumento de casos de infecção e reabertura de escolas no mundo. Há também informações sobre o nível relativamente reduzido de contágio nas escolas de São Paulo após sua abertura.

As funções da escola, principalmente nos anos do ensino fundamental, vão além da transmissão do conhecimento, incluindo cuidados e acesso à alimentação de crianças, liberando os pais – principalmente as mães – para o trabalho. O fechamento de escolas no Brasil atingiu de forma mais dura as crianças mais pobres e suas mães. A evidência mostra que alunos de baixa renda, com menor acesso às ferramentas digitais, enfrentam maiores dificuldade de completar as atividades educativas, ampliando a desigualdade da formação de capital humano entre os estudantes. Portanto, as escolas devem ser as últimas a fechar e as primeiras a reabrir em um esquema de distanciamento social. Há aqui um papel fundamental para o Ministério da Educação em cooperação com o Ministério da Saúde na definição e comunicação de procedimentos que contribuam para a minimização dos riscos de contágio nas escolas, além do uso de ferramentas comportamentais para retenção da evasão escolar, como o uso de mensagens de celular como estímulo para motivar os estudantes, conforme adotado em São Paulo e Goiás (grifos meus).

No Universo paralelo dos empresários, os signatários recomendam aulas! Alguém já entrou em escolas públicas e mesmo nas privadas? Me desculpem, mas não há nos prédios escolares a mínima possibilidade de distanciamento social sem adoecer. São prédios que poderiam ter sido remodelados durante o ano de 2020, pois mesmo as gripes comuns assolam as crianças e professores no inverno. Paredes com fungos, banheiros pequenos sem condições sanitárias para atender todos os alunos.

As escolas são, faz décadas, lugares de não saúde. Janelas no alto das salas impedem conforto ambiental e de iluminação. Quentes no verão e frias no inverno, eis a arquitetura das elites para alunos deste triste trópico.

A preocupação dos signatários é liberar a mãe para trabalhar. Eis a chave do sucesso capitalista. A mãe e o aluno, futuro trabalhador, são capitais humanos. Ah, doce futuro, não ser humano, mas ser capital humano. O olhar para a mãe e os alunos é combinado com cifrão. Capital. Depois, se sobrar, humano.

As frases que grifei "Há estudos mostrando que não há correlação entre aumento de casos de infecção e reabertura de escolas no mundo. Há também informações sobre o nível relativamente reduzido de contágio nas escolas de São Paulo após sua abertura", opõem –se aos estudos de infectologistas, médicos sanitaristas, biomédicos e cientistas da área que, diariamente, dão entrevistas nas mídias. Há estudos? Quais? De quem?

Para terminar outro pilar capitalista em nosso dorso:

O efeito devastador da pandemia sobre a economia tornou evidente a precariedade do nosso sistema de proteção social. Em particular, os trabalhadores informais, que constituem mais de 40% da força de trabalho, não têm proteção contra o desemprego. No ano passado, o auxílio emergencial foi fundamental para assistir esses trabalhadores mais vulneráveis que perderam seus empregos, e levou a uma redução da pobreza, evidenciando a necessidade de melhoria do nosso sistema de proteção social. Enquanto a pandemia perdurar, medidas que apoiem os mais vulneráveis, como o auxílio emergencial, se fazem necessárias. Em paralelo, não devemos adiar mais o encaminhamento de uma reforma no sistema de proteção social, visando aprimorar a atual rede de assistência social e prover seguro aos informais. Uma proposta nesses moldes é o programa de Responsabilidade Social, patrocinado pelo Centro de Debate de Políticas Públicas, encaminhado para o Congresso no final do ano passado.

O que falar quer dizer? Do que trata a Carta Aberta? Vamos ler o parágrafo central. Quanta dissimulação nestas frases! Fala de desemprego e pandemia. Mas, vamos lembrar antes que a carteira de trabalho foi jogada fora no governo Temer. Não foi e não é a pandemia a única causa do desemprego. Já estávamos sem emprego em 2019 e março de 2020. A taxa de desemprego em 2019 era de 11, 9% (inferior a 2018 que foi de 12, 3%) de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Contínua, Pnad-C pelo IBGE. Em 2020, a taxa de desemprego era de 13,5% e a projeção para 2021 é 14,6, segundo a Confederação Nacional da Indústria.

Em 209 já estávamos ganhando por hora e não um salário mensal com carteira de trabalho. Já tínhamos um país uberizado. Uberizado em todo sistema de trabalho, inclusive nas escolas e universidades privadas e, agora, com a famigerada Base Nacional Comum Curricular, a BNCC, feita por Lemann e banqueiros, entraremos no pior desemprego na educação. Nação uberizada. Destroçada. A pandemia apenas escancarou o Brasil. Destampou o projeto ultraliberal de estado ínfimo como o chileno.

Não há Carta Aberta. Há um grupo de elite tentando ganhar espaço político. Quem sabe para candidato à presidência.

*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.