Alguma coisa está fora de ordem

O diabo vem do Norte

Alguma coisa está fora de ordem

Estou pensando no livro da década de 1980, Os demônios descem do Norte, do jornalista Delcio Monteiro, sobre as religiões neocristãs como as mórmons, as testemunhas de Jeová e as transconfessionais que fervilham em cada esquina das cidades latino-americanas para descrever a demonização dos servidores públicos entre eles, a minha profissão, a dos professores que trabalham em escolas públicas.

As igrejas – grandes e pequenas – desceram dos EUA a cada país da América Latina com levantes populares indígenas e de movimentos sociais das décadas de 1960 a 1990, como um fenômeno de ataque sistemático às identidades indígenas, aos movimentos estudantis e operários, aos movimentos feministas, gays, transexuais e a todo e qualquer passo em direção a mudanças de costumes e de religião. Para Delcio Monteiro, entrou em ação o mercado religioso com grande soma de recursos financeiros para canais de TVs, revistas, jornais e a pedagogia de ajuda ao próximo, ou irmão, pautada na Teologia da Prosperidade. Não sejamos inocentes, a pergunta é "De onde veio tanto dinheiro para essa teologia em toda a América Latina? ".

Outra referência desta descida dos demônios é a série The Family, A democracia ameaçada, Netflix, 2019. É um documentário de jornalistas investigativos estadunidenses sobre uma organização fundamentalista cristã que atua secretamente nos corredores do poder de Washington para deter os "comunistas" que querem destruir a família, a igreja, a fidelidade da mulher, as escolas, as crianças e tudo o que desestabiliza a conservadora pátria do Norte.

Essa confraria de patrões de empresas religiosas encomenda relatórios sobre esses "comunistas". A demonização de professores começa aqui. As frases sobre sexualidade, partido políticos, mulheres, gays, travestis, transexuais, vêm, na verdade, desses relatórios. São transformadas em palavras de ordem e passam a circular no Brasil, na Argentina, na Guatemala, no México, Bolívia e outros países latinos. São as frases e fake news "mamadeira de piroca", ou como a da ministra brasileira, "a esquerda gosta de sexo", ou ainda, os professores ensinam sexo nas escolas, ensinam comunismo, daí alguns deputados tentarem criar a "escola sem partido". Esse fenômeno veio ladeira abaixo dos relatórios de religiosos fundamentalistas dos EUA. Parece teoria da conspiração, e é.

A mesma agenda ocorre desde Bush pai até hoje com a educação e os professores. A mesma conspiração.

Vejamos. Não foi o governo brasileiro quem inventou a redução das escolas públicas e o não concurso de docentes desde 2010. Saúde, educação e previdência social não foram destruídas no Chile sem o aval do Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional ou como fez Temer com a previdência brasileira. Medidas como estas vêm do relatório "Uma nação em risco" – A nation at risk – preparado pela National Commision on Excellence in Education, Comissão Nacional de Excelência em Educação, de abril de 1983, com o presidente Ronald Reagan que foram até o governo Trump.

Este relatório de 1983 alertava para a precariedade qualidade da educação, destacava vinte e três milhões de adultos analfabetos funcionais, descrevia que um quinto dos alunos de dezessete anos não conseguiam escrever um texto persuasivo e o desempenho médio dos estudantes em testes padronizados era pior do que antes do lançamento do Sputinick em 1957, de acordo com a tese de Remo Bastos, de 2017.

Mas como em todo país rigidamente conservador e fundamentalista, a culpa é dos professores, é da escola, é dos "comunistas". Assim, nos EUA, a chamada crise escolar foi resolvida com vários projetos que desbancaram a educação pública. Aqui, neste ponto, Mercado das Igrejas e Mercado da educação se juntaram e propuseram mais escolas privadas com menos professores e mais aplicativos de ensino remoto. De uma tacada só eliminaram os mais pobres, os negros, indígenas e trabalhadores. Eliminacionismo educacional. Por que os estados no Brasil militarizam as escolas? Para poder fazer essa reforma prevista no relatório dos ricos conservadores dos EUA.

Governadores aplicam no Brasil as mesmas estratégias dos conservadores republicanos e religiosos dos EUA, sem ficarem vermelhos de vergonha por trair a educação pública brasileira. Chamamos essas políticas de neoliberais; mas para além de neoliberal elas alteram o status moral do ser humano "ilucrável" em direção à precariedade descartável e à degradação irrevogável. Não há, assim, nenhuma reforma" do que se tornou uma tanatologia neoliberal; é vida ou morte, nas palavras da historiadora estadunidense Ravitch.

As mídias oficiais repetem o relatório dos governantes dos EUA. A educação vai mal por causa dos professores. A resposta dos governos é clara, responsabiliza diretores e professores pela escola "ruim". Aí entram os companheiros dos governadores: seus aliados nas eleições, os seus financiadores, os empresários da educação. Assim como nos EUA, estes "goodfelows" votaram em 2017, o famigerado Banco Nacional Comum Curricular, BNCC, que foi sancionado pelo atual presidente, em 2020. Adivinhem a comissão? Dono da maior cervejaria do país, banqueiros e donos de escolas. Um ataque ao Ministério mais polpudo de Brasília.

Quem tem dinheiro matricula seus filhos em privadas com serviços de educação extras e caros como Filosofia, Artes, Línguas, Sociologia. Quem não tem pode comprar serviços educacionais mais baratos. E quem não tem recursos, não educa.

Em moda no Brasil (e nos EUA) vouchers, são auxílio em dinheiro ou em crédito, aos pais de alunos de primeiro e segundo graus para a compra de serviços educacionais aprovados pelo governo. Ora, esses serviços são de empresas privadas; o governo contrata e somente fiscaliza o mínimo comum dos programas educacionais. Um modo de operar privadamente e desonerar a participação dos governos na educação. Assim, as empresas mordem os recursos da educação que o governo oferece. Em troca o ministério da educação fica com a parte menor, a da vistoria da aplicação do currículo. Esta estratégia é a da BNCC.

Quem reclama é preguiçoso, diz o ministro da economia. Quem reclama é "comunista". Quem faz greve quer a destruição da escola. Enquanto isso, a evangelização não para. É a simbiose religiões e neoliberalismo. Quem crê que não existe essa aliança, que aguarde mais dois anos. É pouco tempo.

*Marta Bellini

*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.