Alguma coisa está fora de ordem

Coluna publicada no JORNAL DO PORTO dia 15-1-2021

Alguma coisa está fora de ordem

2021 abriu-se com esperança para a maior parte da população. As vacinas estão no Brasil, falta apenas a logística do Ministério da Saúde se fazer valer. Não canso de repetir, vocês sabem, nesse pandemônio das incertezas provocadas pelo próprio governo, as máscaras deles caem. Debaixo dos farrapos das máscaras, a eugenia, o descaso com os mais pobres, enfim, a história oculta das elites e seu ódio às pessoas simples.

Acredito que, a despeito do escárnio com as vacinas e com a fé no remédio para piolho na luta titânica contra uma máquina – organismo, o vírus, os brasileiros já começam a desconfiar desse teatro governamental.

A questão é mais simples. O vírus é o mesmo no planeta. Não há vírus chinês, russo, inglês assim como não há Homo sapiens, a espécie humana diferente em cada país. As diferenças, no caso humano, são culturais. A biologia do vírus é igual em todo planeta, inclusive a biologia da mutação, é mais rápida nesse pequeno, mas potente ser.

A vacina da Coronavac, produzida com o Instituto Butantã, tem 100% de eficácia em casos graves, ou seja, uma vez vacinada, a pessoa não corre o risco de ser entubada em um hospital. Tem 77% em caso de contaminação em casos médios e 53% em casos leves, a gripe. Não é difícil entender isso. Quem não entende é o responsável pelo governo. Não quer dar o braço a torcer. Pois o Butantã é estatal; são funcionários públicos que fazem as pesquisas e funciona bem desde 23 de fevereiro de 1901. Centenário instituto deste país.

Há dois países ou mais. Vou falar de dois. O das pessoas que fazem o Brasil. E o das que o destroem.

Quem faz o Brasil? Os músicos, os artistas, os cientistas estatais, os professores, muitos religiosos, as mães de Santo, os trabalhadores, os terreiros, as escolas de samba. Ouvi Cacá Diegues dizer em um documentário sobre seus filmes que eles, os cineastas mostram o Brasil dos brasileiros. Fiquei orgulhosa deles. Bye, bye, Brasil somos nós numa época que se findou. Mas somos nós. Aqueles que levam a alegria dos circos e teatro às lonjuras do Brasil. Quem não ri e chora ao mesmo tempo ao ler Peru de Natal de Mario de Andrade? Quem nunca se deixou levar pelo Solo de clarineta de Érico Veríssimo? Quem nunca soube da Capitu, de Machado de Assis? Quem não se emociona com a música Pedacinhos do céu, de Waldyr Azevedo? Com Cartola, o poeta? Com o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha?

Cacá Diegues tem razão, o Brasil é rico, seu povo é rico.

A outra parte é a que come a beleza do país, sua elite. Amo o livro de João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro, descrevendo a formação das elites. Deliciosamente, João Ubaldo, apresenta essas elites como os restolhos da humanidade, os presos e os degredados portugueses que Portugal enviou à colônia brasileira. Disso nasceu uma elite predadora, inculta e cruel. Não preciso falar que o exército brotou desse acidente. É claro que estou falando de literatura, mas não esqueçamos que João Ubaldo também era sociólogo. Sabia a origem dessas elites que, hoje, querem furar a fila das vacinas e antes queriam destruir e privatizar o Butantã, a Fiocruz, as universidades federais e estaduais assim como o ministro da economia ainda quer.

Nesse momento histórico do país, somos agredidos pelas elites descendentes de predadores. Estamos desencantados com as falsas moralidades, com as mentiras governamentais. Outros estão ainda seduzidos com a serpente do poder. Mas sempre mudamos. A hora é da vacina e das ciências para dar vazão às artes, às amizades e a um país realmente brasileiro como diz Cacá Diegues

*Marta Bellini

*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.