Alguma coisa está fora de ordem

Coluna publicada no JORNAL DO PORTO dia 8-1-2021

Alguma coisa está fora de ordem


A crise sanitária que tomou o planeta faz as máscaras dos governantes de quase todos os países caírem. Contrassenso falar em máscaras que caem quando precisamos usar as máscaras para evitar o vírus da covid-19. Mas aqui é metafórico. Melhor seria dizer mascarados. Ou dizer, os reis estão nus.

Fiquei uma semana pensando em escrever algo poético, bonito, mas pesou na decisão de retornar à crise sanitária, as propostas de alguns políticos. Então, peço desculpas de – mais uma vez – tocar nesta ferida da pandemia.

Primeiro, escrevo aqui que me deixou indignada a fuga dos ministros de suas funções. Até terça-feira, dia 5/1/20121, quando o ministro da saúde, fez reunião com o presidente, ele esteve 15 dias sumido. Enquanto isso, as mortes por covid-19 chegaram, na quarta-feira, a 198 mil pessoas.

Penso em Nelson Rodrigues quando vejo o silêncio dos ministros em suas férias. Até pouco tempo, o ministro da economia falava em reformas boas para o mercado. Quem são os mercadores, pergunto? Não somos nós. Nelson Rodrigues, um dia, talvez olhando para ministros semelhantes escreveu; "O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo: - um ministro. Não é nada, dirão. Mas o fato de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro, e não entranhas vivas". Assim vejo os ministros deste governo. Seres empalhados. Empalhados que tiram férias em uma das piores crises sanitárias do país. Com salário integral.

Em segundo lugar, quando li a entrevista dos políticos ligados ao partido Novo, eu desci do meu ínfimo pedaço de céu. Cai nos infernos. Emerson Kapaz, ex-deputado tucano e, agora, do Novo, afirmou que a desigualdade mantém a preservação do meio ambiente porque os pobres consomem menos, dando o exemplo da Índia. Ora, ora, parece que quem come a mais e joga comida fora são os mais ricos. E quem queima florestas e destrói o patrimônio natural são, também, os mais ricos. Veja os fogos propositais na Amazônia. Um acinte a nossa inteligência.

Outro deputado do Novo, Paulo Ganime, quer criar uma "nova" fila para vacinar quem pode pagar. Ora, outra vez. Quer taxar a vacina por R$ 200 reais. Brasil Titanic, sobrevivem os ricos primeiro. Golpe no SUS de cara deslavada. Os pobres que morram sem ar com seus rins e pulmões aos pedaços.

E em terceiro lugar, por último, é válida a ideia de Airton Krenak, líder indigenista, autor do maravilhoso livro "Ideias para adiar o fim do mundo" de que a próxima missão do capitalismo é se livrar ao menos de metade da população da Terra. O que a pandemia tem feito é um laboratório para o ensaio da morte. Eliminação dos corpos desnecessários por meio da violência, epidemias, ou guerras internas como as mortes por "tiros acidentais" ou externas. No Brasil temos esse laboratório em funcionamento.

Juntando essas três dimensões: ministros com medidas erráticas, empalhados pelo negacionismo governamental, defesa de reformas que tiram empregos, salários e previdência, filas com vacinas pagas para ricos temos a mais vasta necrofilia do Brasil.

Não vamos esquecer o governador de São Paulo, que deixou a população idosa sem ônibus em plena pandemia. Que custo dão às empresas de ônibus? Não vejo velhos pobres passeando em shoppings, nem flanando nas cidades. Vejo a Agenda Big Money para quem Money Talks (o dinheiro fala mais alto) criando uma outra população, menor e com mais dinheiro. Só não sei de onde sairá este dinheiro. É o capitalismo mais moderno que se reúne de vez em quando nos chiques hotéis dos EUA para marcar quantos pobres têm que morrer. E eu que acreditava que isso era filme de ficção e terror.

*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.