Alguma coisa está fora de ordem

Alguma coisa está fora de ordem

O ano passado eu morri, mas este ano, eu não morro

Essa frase, da música de Belchior, Sujeito de sorte, virou um hino de muitas gerações. A frase corre mundo no documentário de Emicida, Amarelo. Parece a cena de um grito coletivo no Brasil, neste ano de 2020.

O mais lindo disso tudo é que, exatamente, esta frase, Belchior a retirou de Zé Limeira, violeiro negro e analfabeto, conhecido como Poeta do Absurdo. Essas informações são do bom jornalista, Kerison Lopes, de Minas Gerais.

Eu cantei lá no Recife

Perto do Pronto Socorro

Ganhei duzentos mil-réis

Comprei duzentos cachorro;

Ano passado eu morri

Mas este ano eu não morro.

Zé Limeira viveu até 1954 e sua frase foi reavivada em 1976, no disco Alucinação, de Belchior, de 1976. Em 2020, Daíra canta essa música com a voz da potência.

Somos filhos e filhas de Zé Limeira. Viva o hino de reparação da brasilidade. 2020, como venho dizendo nesta coluna, foi o ano da destruição crua dos cerrados, da Amazônia, das restingas. Foi o ano do deboche oficial sobre as mortes da pandemia. O ano das vendas de remédio para piolhos para um vírus sistêmico e devastador.

O pior dos vírus foi o das elites e seus votos no pior dos governantes deste continente. O rei do deboche. Meus amigos de outros países não acreditam e todos os dias me perguntam se é verdade que isso ou aquilo ocorreu. Infelizmente, é tudo verdade.

- Não temos vacinas. Para o governo que se diz perito em mercado, brigar com a Pfizer porque a empresa não procurou o Ministério da Saúde para fazer o contrato, é uma infantilidade. No mundo dos mercados, quem precisa, vai atrás. Aliás, a Pfizer procurou o governo em 14 de dezembro deste ano. Resposta? Não a teve.

- Argentina, Chile, México já iniciaram a vacinação da população. Nem falo dos países europeus, da Rússia, Japão e China, EUA, na frente de todos. Ficamos como estão os países africanos. Sem vacinas. Chegam as vacinas da coronavac em São Paulo, mas o rei do deboche continua se desnudando: quer o Raio-X do rosto da presidenta Dilma. Alusão à tortura da presidenta. Quem ri de corpos torturados, ri das mortes por covid-19. Necrófilo.

- A reforma trabalhista pôs no Brasil o tal do trabalho intermitente. Recebe-se pelas horas trabalhadas. Geramos, "salários" de R$ 200 reais a R$ 500. Quem chega a R$ 1.000 reais, chega a comer, mas fica devendo o aluguel.

- Em São Paulo, o prefeito eleito, Covas, tirou a gratuidade das passagens de ônibus para pessoas acima de 60 anos de idade. Grande economia fará. Mais velhos andando a esmo e a pé, morrendo antes de chegar ao hospital. Ah, o governador aumentou seu salário. Nem ficou vermelho por isso.

- Os empresários e comerciantes gritam para abrir suas portas de produção e venda. Mal sabem que a continuar como estamos as falências exterminarão suas profissões. Questão de tempo. Quem compra com "salários" intermitentes? Quem ousará comprar nos próximos finais de ano sem décimo terceiro salário e sem previdência?

- As redes de proteção social são desmanchadas todo dia. Crianças, jovens e velhos à mercê de privatistas de plantão. No Natal, seis mulheres mortas por maridos e namorados furiosos pela masculinidade troglodita.

Recordo-me do velho Brandão e seu livro "Não verás país nenhum". Estamos por aí.

Mas, é final do ano, ou dos últimos seis anos que assolaram este país, e eu vou citar o psicanalista Christian Dunker. Sobreviver não é pouco nestes dias, semanas e meses. Tantos altos e baixos, mais planícies do que montanhas, temos que sobreviver psiquicamente. Vamos entender que podemos criar no sofrimento.

O vírus atrapalhou muito as pessoas, mas o desamparo dos governantes foi mais duro. No entanto, podemos substituir esse desamparo por mais lucidez com as pessoas que precisam de nós, nós que estamos sobrevivendo um pouco mais.

O fim de ano foi interessante. As compras diminuíram. Pode ser que tenhamos criado outras formas de amar e de se aproximar das pessoas que gostamos. Talvez estejamos criando outras travessias diferentes dos anos passados. Talvez estejamos criando um acervo de solidariedade, de relações boas, e talvez, estejamos reorganizando para termos cuidados de nós mesmos e de pessoas mais velhas para mitigar os lutos e perdas.

É o que desejo. Para mim e todos e todas que amo. E aos meus e minhas leitoras desta Coluna.

Obrigada a todos e todas.

Um abraço carinhoso.

Obrigada àqueles que me enviaram mensagens sobre as colunas.

Que 2021 seja o do grito ANO PASSADO EU MORRI, MAS ESTE ANO EU NÃO MORRO.

Marta Bellini - Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.