Poema erótico, traduções erradas e histórias épicas: como a Bíblia pode ser lida além da religião

Poema erótico, traduções erradas e histórias épicas: como a Bíblia pode ser lida além da religião
Bíblia segue sendo o livro mais citado por brasileiros, segundo pesquisa Retratos da Leitura no Brasil. Tentativa de fazer versões literárias das escrituras aumentaram nos últimos anos. Com 66 livros de diversos autores, a Bíblia é o título mais lido no Brasil, anda debaixo do braço de evangélicos aos domingos e é companheira de cabeceira de religiosos todos os dias.

Mas as escrituras sagradas guardam também passagens que podem contradizer, à primeira vista, sua aura sagrada: um "lado B", com histórias épicas de morte e vingança e até poema erótico que fala de seios e beijos.

Por suas páginas, há ira, amor, erotismo, poesia, história e reapropriação de lendas pagãs. Em 2020, a Universidade de São Paulo (USP) ofereceu um curso de inverno justamente sobre esse aspecto histórico e literário da Bíblia, descartando a religião. O curso do doutor em Literatura Anderson de Oliveira Lima teve vagas esgotadas.

O professor e o presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL) contam ao G1 como a Bíblia pode ser lida sem as lentes da religião - e quais surpresas ela guarda.

Bíblia é o livro mais citado pelos leitores brasileiros, segundo a pesquisa "Retratos da leitura no Brasil"

Reprodução/TV Anhanguera

Amada amante

Em meio às grandes histórias do antigo testamento e às lições de Jesus no segundo, se encontram páginas de pura poesia. Os "Salmos" escritos por Davi têm capítulos sobre a simplicidade e a beleza da vida, o campo, a amizade.

Mas são os "Cânticos" de Salomão que mais chamam a atenção. Em seus oito capítulos, o antigo rei de Israel descreve passagens cheias de amor e erotismo com dois narradores, um homem e uma mulher apaixonados. Algumas delas aparecem até perdidas nas páginas sagradas:

"Beije-me ele com os beijos da sua boca; porque melhor é o teu beijo do que o vinho"

"Às éguas dos carros de Faraó te comparo, ó meu amor"

"O meu amado é para mim como um ramalhete de mirra, posto entre os meus seios"

"Os contornos das tuas coxas são como joias, trabalhadas por mãos de artistas"

Lima explica que o livro foi inserido na Bíblia com uma sugestão de interpretação metafórica: a representação do amor de deus e seu povo. "O livro está dentro do cânone. Ele sugere um modo de leitura, mostra que as pessoas que o inseriram ali o liam com o olhar religioso", diz.

Mas alguns líderes e estudiosos dizem que o amor de deus não nega o amor humano, pelo contrário. Antes da escrita da Bíblia, defendem, outras histórias e poemas judaicos já usavam o amor erótico para falar do amor de deus.

Assim como a inspiração erótica dos "Cânticos", algumas histórias bíblicas não são exatamente originais: elas já existiam na literatura e na mitologia de diversos povos, explica Lima.

"A história do dilúvio já aparecia em livros de mitologia, é uma história popular que circulava em diferentes nações. O nome evangelho (bom anúncio) já era usado para anunciar a vitória dos imperadores."

"As passagens que falam sobre fazer aos outros o que quer que façam consigo já existiam na literatura judaica. A Bíblia não é um livro original, que o autor criou algo que ninguém pensou, é parte de uma história, de um diálogo com as obras que surgiram antes dela", explica Lima.

O livro 'Os Evangelhos'

Divulgação

Erros milenares

Em novembro deste ano, o jornalista e historiador Marcelo Musa Cavallari lançou uma nova tradução dos evangelhos feita diretamente do texto grego, o idioma original do novo testamento.

Nessa empreitada, o estudioso revelou algumas alterações que as traduções da Bíblia trazem - e que podem mudar o sentido de algumas passagens.

"Tem alguns termos que foram transliterados. Cristo não é uma tradução, é a palavra grega. Toda vez que aparece cristo nas escrituras, o significado, na verdade, é 'ungido', sem o sentido cristão. João Batista seria o João que mergulha, entre outros casos que nos fazem encarar o texto com outro olhar", explica Lima.

Outro exemplo é a palavra anjo. No original grego, o termo usado é angelus, que significa mensageiro. Ao não traduzir o termo, foi criada a figura do anjo, defende Cavallari.

Além do conteúdo, foi também a forma que motivou o jornalista a escrever essa nova tradução dos livros de Mateus, Marcos, Lucas e João. O autor defende que cada um dos apóstolos tinha uma maneira própria de narrar a vida de Jesus, mas a beleza literária foi sendo suprimida ao longo dos séculos.

Cavallari e as chamadas "bíblias literárias", que também buscam recuperar a essência dos originais, usam a divisão por capítulos e versículos, por exemplo. Seus textos são narrativas corridas.

Nos últimos anos, os esforços por esta nova versão produziram fenômenos de vendas e críticas, como a tradução do português Frederico Lourenço, professor universitário e escritor premiado, e uma nova versão norueguesa feita por 12 escritores famosos no país, que formou até filas nas portas das livrarias.

O maior, sim, mas em queda

A Bíblia é o livro mais citado pelos leitores brasileiros, segundo a pesquisa "Retratos da leitura no Brasil", uma espécie de "censo" feito pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o Itaú Cultural.

Mas mesmo ocupando o primeiro posto, a leitura diminuiu nos últimos quatro anos: passou de 42%, em 2015, para 35% em 2019. A pesquisa é feita a cada quatro anos.

Exemplar da bíblia para crianças

Reprodução/EPTV

Nos Estados Unidos, a leitura das escrituras também diminuiu neste ano em relação aos anos anteriores. Entre 2011 e 2019, os leitores diários da Bíblia variaram entre 14% e 13%. Em 2020, eles foram cerca de 9%, segundo o relatório "State of the Bible 2020", feito pela Sociedade Americana da Bíblia (ABS, em inglês), e o grupo Barna.

Bíblia feminista, ilustrada, reinventada

A Bíblia como produto se reinventa a cada ano, diz Vitor Tavares, presidente da CBL. Depois que as discussões sobre direitos das mulheres voltaram a encontrar força social, por exemplo, aumentou a demanda por Bíblias "feministas", com passagens femininas destacadas.

A segmentação é crescente, de olho não só nas tendências sociais, mas também em "estrelas religiosas".

"A ilustrada para crianças é uma das mais vendidas. Tinha uma com apresentação do padre Reginaldo Manzotti que vendia de 30 a 50 mil exemplares por ano. Uma tradução ecumênica com comentários de um grupo de estudiosos franceses também faz sucesso", conta Tavares.

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