Arnaldo Antunes inaugura uma nação musical em show com o pianista Vitor Araújo
Artista atinge alto grau de beleza plástica e poética ao interagir com o virtuoso instrumentista no espetáculo 'O real resiste'. Vitor Araújo e Arnaldo Antunes em cena no show 'O real resiste'Reprodução / VídeoResenha de show transmitido online através do projeto #SescEmCasaTítulo: O real resisteArtista: Arnaldo Antunes – com o piano de Vitor AraújoLocal: Teatro do Sesc Pompeia (São Paulo, SP)Data: 3 de outubro de 2020, das 19h às 20h30mCotação: * * * * 1/2? Show disponível para streaming no YouTube do Sesc São Paulo.? Nos versos poéticos de João (2019), canção que assina com o compositor e violonista Cezar Mendes, Arnaldo Antunes sintetizou a grandeza de João Gilberto (1931 – 2019) ao sustentar que o criador da bossa nova fundou uma civilização com a voz e o violão aperfeiçoados pelo silêncio. Na estreia do show O real resiste, feito por Arnaldo com o pianista Vitor Araújo e transmitido online (com imagens de acabamento cinematográfico) do palco do Sesc Pompeia, na cidade de São Paulo (SP), o próprio artista paulistano inaugurou uma nação musical ao remodelar a própria obra em apresentação no inédito (para o artista) formato de voz & piano. E que piano! Aos 60 anos, Arnaldo Antunes encontrou em Vitor Araújo – prodígio pernambucano nascido em 1989 no Recife (PE) – um parceiro ideal para a exposição do pensamento que propaga desde os anos 1980 em obra construída com doses de música e poesia, às vezes com mais poesia do que música. Vitor Araújo em momento simbiótico com o piano no show 'O real resiste'Reprodução / VídeoSe Arnaldo Antunes pega o ouvinte-espectador pela palavra, Vitor Araújo habita universo particular que, em fricção com a música do titã, deu frescor ao verbo do pensador em show de poesia potencializada pelas imagens abstratas projetadas por Marcia Xavier – que entrou em cena como cantora para dar voz com Arnaldo a Luar arder (2010), canção da qual é coautora – e pela luz climática de Ana Turra. Formatado sob direção musical dos dois artistas, o show O real resiste resultou tão sedutor – e inovador pela interação verdadeira de Arnaldo com Vitor – que conseguiu a proeza de diluir em cena as imperfeições melódicas do repertório autoral do álbum O real resiste (2020). Vestindo terno, Arnaldo Antunes soube se adaptar ao universo musical de Vitor Araújo ao mesmo tempo em que jamais deixou que a poética da própria obra fosse sobrepujada pela maestria heterodoxa do instrumentista. Expoente contemporâneo da música instrumental brasileira, o pianista vem quebrando as historicamente frágeis fronteiras entre a música popular e a música dita erudita com pulso frenético. Músico que sempre foi de Villa-Lobos (1887 – 1959) a Radiohead, passando pelo conterrâneo Luiz Gonzaga (1912 – 1989), Araújo demole esses muros com a mesma virulência com que martela a madeira do piano Yamaha para tirar sons percussivos do instrumento, como visto e ouvido em No fundo (Arnaldo Antunes e Edgard Scandurra, 1995), música que soou quase como rap na sintaxe de Arnaldo. Contudo, já na abertura do show, o instrumentista foi capaz de traduzir, no toque do piano, o minimalismo exigido pela já mencionada canção João. Em roteiro musical intercalado por poemas muitas vezes sussurrados por Arnaldo, canções se irmanaram com rocks em atmosfera que por vezes evocou a música inclassificável de John Cage (1912 – 1992) sem jamais deixar de evidenciar o traço de originalidade dos dois artistas. Arnaldo Antunes canta 'Bandeira branca' no show 'O real resiste'Reprodução / VídeoE que canções! Meu coração (Arnaldo Antunes e Ortinho, 2009), De outra galáxia (Arnaldo Antunes e Marcia Xavier, 2020) – em link espacial com Contato imediato (Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte, 2006) que abduz pela apaixonante beleza romântica dos números – e a caymminiana Itapuana (Arnado Antunes e Cezar Mendes, 2004) se banharam na delicadeza melódica. Em contrapartida, Arnaldo pecou pelo excesso na desconstrução de Vilarejo (Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Marisa Monte e Pedro Baby, 2006), canção sussurrada, quase recitada, que se tornou o único ponto a ser ajustado no roteiro. Ao misturar as cores de Lua vermelha (Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, 1996) e de Bandeira branca (Max Nunes e Laércio Alves, 1969), marcha inédita na voz do cantor e interpretada no devido tom introspectivo, sem qualquer alusão à origem carnavalesca do tema, Arnaldo Antunes mostrou que a obra do artista continua em movimento. Da aura punk do rock Saia de mim (Titãs, 1991) à suavidade da paisagem solitária vislumbrada em Alta noite (Arnaldo Antunes, 1993), passando pela força vital de O pulso (Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Tony Bellotto, 1989), Arnaldo Antunes se irmanou com Vitor Araújo – pianista de meias verdes e mãos ora ternas, ora nervosas, que pareceu perceber o instrumento como extensão do próprio corpo – em show capaz até de harmonizar imperfeições. A beleza pensante de Arnaldo Antunes resiste em meio ao horror do Brasil de 2020, apontando os alicerces de outra civilização.Arnaldo Antunes em cena no show 'O real resiste', apresentado em 3 de outubroReprodução / Vídeo