Gerson King Combo, um rei que teve orgulho de ser negro

Gerson King Combo, um rei que teve orgulho de ser negro
Cantor do hino 'Mandamentos black' deixa legado que transcende a música por ter elevado a autoestima da juventude brasileira que curtia o soul e o funk dos anos 1970. Gerson King Combo na capa de álbum antológico de 1977

Reprodução

? OBITUÁRIO – Para dimensionar corretamente a grande importância de Gerson King Combo na música brasileira, é preciso relacionar o aparecimento do artista ao inflamado momento social e político dos Estados Unidos na segunda metade da década de 1960.

Naquela época, a luta contra o racismo ganhou as ruas dos EUA e gerou movimento pautado pelo orgulho negro em que a trilha sonora era o soul e o funk. É nesse contexto que o cantor norte-americano James Brown (1933 – 2006) virou espécie de líder musical do movimento.

A voz e o funk de Brown ecoaram nos corações e mentes de jovens do mundo todo. No Brasil, Gerson Rodrigues Côrtes (28 de novembro de 1943 – 22 de setembro de 2020) era um jovem carioca de 20 e poucos anos que, como muitos brasileiros da mesma geração, fez a cabeça ao som de Brown. Mal sabia esse jovem que, nos anos 1970, ele seria um dos reis do movimento Black Rio, um tradutor da ideologia de Brown para a linguagem da música do Brasil.

Gerson chegou a conviver brevemente com o universo da Jovem Guarda por ser irmão de Getúlio Côrtes, autor de Negro gato (1965), hit black do movimento pop, mas encontrou a própria turma por volta de 1969. Nesse ano, a música brasileira entrava em ebulição com a efervescência soul e funk que propiciou o aparecimento de ídolos negros como Tim Maia (1942 – 1998) a partir de 1970.

Gerson surgiu nessa fervilhante cena black brasileira em que também estavam o pianista Dom Salvador, o compositor Cassiano (gênio do grupo Os Diagonais), Tony Tornado e o músico e maestro Erlon Chaves (1933 – 1974), de cuja banda Gerson chegou a fazer parte. Anos depois, ele viraria Gerson King Combo em referência à banda norte-americana King Curtis Combo, do saxofonista norte-americano de soul King Curtis (1934 – 2018).

A morte de Gerson King Combo – na noite de quarta-feira, 22 de setembro, aos 76 anos, na cidade natal do Rio de Janeiro (RJ), em decorrência de infecção generalizada e complicações de diabetes – cala uma voz que se levantou para bradar, em alto e bom som, nos anos 1970 que, sim, vidas negras importam. E que black is beautiful e que a música negra importa, até porque ela é a base da música do mundo.

Combo foi um rei do subúrbio carioca. Encarnou como toda a propriedade o "James Brown brasileiro" aos olhos e ouvidos de uma juventude carioca que, enfim, encontrava a própria identidade negra na vida e na música, dançando e suando ao som black dos bailes da pesada.

Gerson King Combo deixa obra influenciada pela música do cantor norte-americano James Brown

Divulgação

King Combo foi rei numa dinastia pautada pela coletividade. Tanto que o primeiro álbum do artista, Brazilian soul, foi lançado em 1970 e saiu creditado a Gerson Combo e a Turma do Soul. Nesse disco, o cantor imprimiu a alma do soul e do funk em sambas e em músicas nordestinas, em seleção de sucessos alheios, no embalo da explosão de Tim Maia.

Combo conquistaria a realeza a partir de 1977, com o álbum intitulado Gerson King Combo. Pela primeira vez com o "King" no nome artístico, o cantor ascendeu com disco de funk e soul gravado com a banda União Black e lançado em 1977 com o hino Mandamentos black (Gerson King Combo, Pedrinho da Luz e Augusto Cesar) no repertório autoral.

Havia toda uma ideologia de paz, amor e orgulho negro nos versos imperativos da letra dessa composição ("Dançar como dança um black!" / "Amar como ama um black!" / "Andar como anda um black!") que bastaria essa música para eternizar o nome de Gerson King Combo na música brasileira.

Mas o artista ainda fez um segundo álbum – Gerson King Combo volume II, lançado em 1978 e mais influenciado pela disco music sem perda da pegada funk – antes de ser dispensado pelo mercado fonográfico porque as vendas dos dois discos foram desanimadoras para a indústria.

Mergulhado no ostracismo ao longo da década de 1980, Combo voltou à música em 1998 e lançou em 2001 um álbum, Mensageiro da paz, pautado pela nostalgia da modernidade dos anos 1970. Em novembro de 2013, mês em que fez 70 anos, o artista fez o registro audiovisual de show ainda inédito, embora já com alguns singles lançados tardiamente em 2019.

Voz pioneira do funk e do soul brasileiros que emergiram nessa década amalgamados com o samba, Gerson King Combo deixa legado que extrapola a música em si por ter propagado um mandamento black que ainda ecoa no Brasil de 2020, espalhando uma mensagem de paz e orgulho negro. O orgulho que ele teve enquanto foi rei.