Pente-fino de livros em Rondônia começou após denúncia de palavrão em obra de Rubem Fonseca, diz secretário

'Amálgama' estava em lista de livros que deveriam ser recolhidos de escolas. Ao G1, Suamy Vivecananda afirmou que denúncias começaram a ser enviadas na quarta; MPF investiga. Ao receber prêmio em 2015, autor defendeu uso de palavrões: 'Nós, escritores, não podemos discriminar as palavras'.

Capa do livro 'Amálgama', de Rubem Fonseca Divulgação/Ediouro

Capa do livro 'Amálgama', de Rubem Fonseca Divulgação/Ediouro

O pente-fino nas obras literárias das escolas de Rondônia começou após a denúncia de que havia um palavrão no contos "Amálgama" (Ediouro), do escritor Rubem Fonseca, de 94 anos, um dos maiores escritores brasileiros vivos. A revelação foi feita pelo secretário Estadual de Educação do estado (Seduc-RO), Suamy Vivecananda Lacerda de Abreu, em entrevista ao G1 nesta sexta-feira (7).

Abreu, no entanto, não citou a origem da denúncia. O Ministério Público Federal (MPF) abriu investigação para apurar a atuação da Seduc em relação ao memorando da pasta. Divulgado nesta quinta-feira (5), o documento ordenava a retirada de 43 livros das escolas.

Só de Rubem Fonseca, havia 19 obras na relação. Outros clássicos da literatura como "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis, "Macunaíma", de Mário de Andrade, e "Os sertões", de Euclides da Cunha, compunham a lista (veja abaixo). O ofício trazia também uma observação: "Todos os livros de Rubem Alves devem ser recolhidos".

O secretário negou que os livros serão recolhidos e reforçou que o Estado apura o caso. "Os livros estão na escola. Já chegaram. É para serem usados. Não existe nenhum tipo de interesse nosso em censurar uma obra clássica que nós adquirimos. O governo está apurando", disse.

O secretário alegou ainda que não assinou o documento que autorizava o recolhimento dos títulos e negou que estava ciente da lista de livros. "O documento não está concluso, não passou pela assessoria técnica que vai deixá-lo apto para que eu assine", explicou.

Publicado em 2013, "Amálgama" é uma coletânea de contos que tem, segundo o material de divulgação da editora, "todos os elementos" que caracterizam a obra de Rubem Fonseca ("o erotismo, a violência, a velocidade narrativa, o clima noir").

O volume é o 17º na lista da Seduc.

A lista com os 43 livros e o memorando 4/2020 determinando o recolhimento imediato das obras foram divulgadas em redes sociais na quinta-feira (6).

No ofício, a Seduc afirmava ser necessário tal recolhimento porque estes apresentavam "conteúdos inadequados às crianças e adolescentes".

O documento, que seguia no sistema interno da Secretaria de Educação de Rondônia, passou a ser listado como sigiloso.

Fonseca já falou sobre palavrões em sua obra

Em 2015, ao receber o Prêmio Machado de Assis, entregue pela Academia Brasileira de Letras (ABL) pelo conjunto da obra, Rubem Fonseca citou o primeiro livro que escreveu, aos 17 anos, e falou sobre como a obra chocou o primeiro editor a quem ela foi oferecida. Ele teria questionado, justamente, a presença de palavrões no texto.

Questionado sobre o fato de Machado de Assis e Eça de Queiroz, algumas de suas inspirações, não usarem palavrões em seus textos, ele afirmou que as palavras não devem ser discriminadas.

"Eu escrevi 30 livros. Todos cheios de palavras obscenas. Nós, escritores, não podemos discriminar as palavras. Não tem sentido um escritor dizer: 'Eu não posso usar isso'. A não ser que você escreva um livro infantil. Toda palavra tem que ser usada", afirmou Rubem Fonseca, em 2015, ao receber o prêmio da Academia Brasileira de Letras.

Assista, acima, ao discurso feito por Rubem Fonseca em 2015.

Na época em que anunciou o Prêmio Machado de Assis para Rubem Fonseca, a ABL disse que o autor "consagrou-se por sua narrativa nervosa e ágil, ao mesmo tempo clássica e moderna, entre o realismo e o policial, revelando a violência urbana brasileira, sem perder o olhar sensível para a tragédia humana a ela subjacente, a solidão das grandes cidades ou para os matizes do erotismo".

"Seu estilo contido, irônico e cortante, ao mesmo tempo denota um leitor dos clássicos e um ouvido atento ao falar das ruas em seu tempo. Exerceu profunda influência em nossa cena literária, inaugurando a tendência que Alfredo Bosi chama de 'brutalista'", continuou o comunicado.

Dentre os principais livros de Rubem Fonseca, estão os volumes de contos "Lucia McCartney" (1967), "Feliz ano novo" (1975) e "O cobrador" (1979), além dos romances "O caso Morel" (1973), "A grande arte" (1983) e "Agosto" (1990).

Nascido em Juiz de Mora (MG) em 11 de maio de 1925, José Rubem Fonseca mudou-se para o Rio aos 8 anos de idade. Formado em Direito, trabalhou como comissário de polícia no início dos anos 1950.

Na década seguinte, prestou serviços para o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), vinculado ao golpe militar de 1964. Mais tarde, ele negou que tivesse apoiado o regime.

'Censura à cultura'

Entidades divulgaram notas de repúdio contra o memorando da Seduc de Rondônia. Segundo a Academia Brasileira de Letras (ABL), o pedido de recolhimento é uma censura que atinge tanto a literatura quanto a arte.

Machado de Assis, um dos escritores listados no memorando, foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras, em 1897.

"A Academia Brasileira de Letras vem manifestar publicamente seu repúdio à censura que atinge, uma vez mais, a literatura e as artes. Trata-se de gesto deplorável, que desrespeita a Constituição de 1988, ignora a autonomia da obra de arte e a liberdade de expressão. A ABL não admite o ódio à cultura, o preconceito, o autoritarismo e a autossuficiência que embasam a censura", disse a ABL em nota.

"É um despautério imaginar, em pleno século XXI, a retomada de um índice de livros proibidos. Esse descenso cultural traduz não apenas um anacronismo primário, mas um sintoma de não pequena gravidade, diante da qual não faltará a ação consciente da cidadania e das autoridades constituídas."

Para a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o documento viola os mais caros princípios e garantias fundamentais da Constituição Federal. Já a União Nacional dos Estudantes (Une) afirmou nesta sexta-feira que a lista da Seduc "foi uma tentativa de censura à cultura".