Arnaldo Antunes expõe belezas e imperfeições de canções no tom desnudo do álbum 'O real resiste'

Capa do álbum 'O real resiste', de Arnaldo Antunes Marcia Xavier / Divulgação

Capa do álbum 'O real resiste', de Arnaldo Antunes Marcia Xavier / Divulgação

Artista retoma a sonoridade introspectiva de 'Qualquer' sem a mesma inspiração autoral do disco de 2006.

Resenha de álbum

Título: O real resiste

Artista: Arnaldo Antunes

Gravadora: Altafonte

Cotação: * * * 1/2

? Arnaldo Antunes despe melodias e poesias no introspectivo clima à meia-luz em que ambienta O real resiste, álbum autoral com 10 músicas inéditas lançado pelo artista nesta sexta-feira, 7 de fevereiro.

Na contramão da vivacidade rítmica do álbum solo anterior, RSTUVXZ (2018), disco que se alimentou tanto das afinidades como dos contrastes entre samba e rock, o cantor e compositor paulistano reedita a atmosfera serena do álbum Qualquer (2006) para priorizar as canções. Não por acaso, o pianista Daniel Jobim toca tanto nesse disco de 2006 como em O real resiste.

Nesse formato íntimo que harmoniza somente piano e instrumentos de cordas, dispensando percussão e bateria, as canções – desnudadas – expõem belezas e imperfeições com mais clareza. É quando saltam aos ouvidos tanto a sedução da canção romântica De outra galáxia – parceria de Arnaldo com a mulher, Marcia Xavier, que sobressai entre as oito (reais) novidades do disco, remetendo à balada Contato imediato, joia do disco de 2006 – quanto a fragilidade de Devagarinho, canção envolvida em aura evocativa da bossa nova.

E por falar em bossa, o papa dela, João Gilberto (1931 – 2019), é celebrado em João, canção composta por Arnaldo com Cézar Mendes, autor da melodia, e apresentada em julho pelos parceiros no programa Fantástico (TV Globo) em gravação de voz & violão.

Por mais que o molde do álbum O real resiste já seja introspectivo pela própria natureza do formato instrumental escolhido pelo artista, o modelo de voz & violão faz mais jus ao espírito minimalista de João Gilberto e da própria canção, em cuja letra Arnaldo sintetiza a grandeza do arquiteto da nação musical fundada em 1958 com a criação da batida diferente que fez tudo soar novo.

A outra composição do álbum O real resiste já previamente apresentada, em single editado em novembro, é a música-título, assinada somente por Arnaldo. Com letra que impactou ao questionar a força das sombras políticas que andam escurecendo o Brasil. a composição O real resiste alinha versos que pairam soberanos acima da melodia, valorizados pelo arranjo, como se a música tivesse sido criada somente para dar vazão ao politizado jorro poético.

Outra música de letra forte, Termo morte (Arnaldo Antunes), pedia tom ainda mais interiorizado na gravação por ser acerto de contas com a finitude que já povoa a mente desse poeta que caminha para os 60 anos, a serem festejados em setembro de 2020. O arranjo, com direito a coro, soa excessivo na faixa.

Produzido por Arnaldo com Gabriel Leite, o álbum O real resiste foi formatado com arranjos criados coletivamente pelo artista com os músicos que tocam nas dez faixas. Com Cézar Mendes (no violão de nylon), Chico Salem (na guitarra, no violão de nylon e no violão de aço), Daniel Jobim (no piano) e Dadi (na guitarra, no baixo e okulele), Arnaldo cria sonoridade que por vezes remete ao universo musical do trio Tribalistas, integrado pelo cantor com Carlinhos Brown e com Marisa Monte.

Talvez por ter sido composta por Arnaldo (com Carlinhos Brown, Pedro Baby, Pretinho da Serrinha e Marcelo Costa), durante a turnê dos Tribalistas, a canção Na barriga do vento – gravada por Arnaldo com a filha Celeste Antunes – remete à sonoridade do trio sem reeditar o poder de sedução do cancioneiro tribalista.

No mesmo clima tribalista, a delicada canção Luar arder junta as vozes de Arnaldo e da mulher Marcia Xavier, coautora da composição, sem acender a fogueira da paixão.

Se a sonoridade resulta elegante e (quase sempre) precisa, a safra autoral do compositor apresenta qualidade oscilante em O real resiste, distanciando o álbum do êxito do antecessor Qualquer.

Língua índia (Arnaldo Antunes) e Dia de oca (Arnaldo Antunes), música sobre a pertinente questão indígena, estão longe de figurar entre as criações mais inspiradas do compositor. Dia de oca é a faixa de maior vivacidade no disco, por conta do toque percussivo dos violões que embalam a canção.

Ao longo desse disco orgânico que acaba no samba Onde é que foi parar meu coração (Arnaldo Antunes), cantado com leveza e com direito a um coro, o titã soa corajoso ao dispensar programações que poderiam enfeitar o cancioneiro de O real resiste para tentar dar a impressão de que as músicas estão à altura do poeta, o que nem sempre é real. Mas Arnaldo Antunes resiste como talentoso artista multimídia do universo pop brasileiro.