História de dores secretas e outras nem tanto

O livro organizado por Mary Del Priore, sobre as mulheres do Brasil é, infelizmente, um retrato do século XXI brasileiro. Nosso país ainda mostra vergonhosos aspectos da mentalidade e ação das elites patriarcais. Falo aqui do caso de Mariana Ferrer, estuprada em Florianópolis enquanto trabalhava e a elite jurídica dá a sentença favorável ao estuprador, rapaz de grupo da elite da cidade. Nada a dever, como sempre escrevo aqui, às elites do Brasil Colônia.

Um dos vergonhosos episódios de ódio e morte nos séculos 1500 a 1700, são as trilhas de abandonos de crianças por terem nascido em uma sociedade que desconhecia orfanato e não tinha leis de adoção de milhares de crianças filhas de escravas, de mulheres brancas que tinham que esconder os filhos ou por miséria mesmo. Muitas crianças morriam por serem abandonadas nas Rodas de igrejas ou de conventos. Morriam de fome, frio, excesso de calor. Expiravam.

Durante o período 1758-1762, diz Renato Venâncio, um dos autores do livro com Mary Del Priore, "a Casa da Roda de Salvador recebeu 11 enjeitados mortos, o que representava 2,7% do total de crianças enviadas à instituição. Trinta anos mais tarde, entre 1790 e 1796, foram enviados 51 expostos mortos, ou seja, para 8% dos abandonados daqueles anos a Roda serviu de cemitério gratuito". No

Rio de Janeiro, nos mesmos períodos os casos também foram numerosos. Pode-se dizer que no Brasil, as almas de crianças, de tantas mortas assim, rondam o continente.

Que não mudou tanto assim nesses tempos de 2020. Vários abandonos, Moisés brasileiros.

Morriam crianças que tinham pais. Em 1620 uma esposa esconde-se de seu marido violento, com seus seis filhos, embaixo da cama para não ser morta. Estupros, surras eram o mais comum dos afetos.

No século XIX algumas mudanças. Mas os castigos são mantidos. Para mulheres que não suportavam as demandas violentas do patriarcado, eis que viraram "loucas" para a medicina recém-nascida no país, a psiquiatria. A ideia de sexualidade anômala, de histeria feminina aparece aqui.

Aparece outras ideias, a de que estupro poderia ser provocada pelas próprias mulheres. A mentalidade de homem era a do ser inteligente e da mulher frágil, sedutora, submissa e doce atravessa o século XIX e aporta no século XX. Também no XXI.

O caso Mariana Ferrer é isso. Muito semelhante. Com 20 anos é abordada e estuprada por alguém que é filho da elite de Florianópolis, amigo das elites econômicas e jurídicas. A dor da gente não sai no jornal, dizia Chico Buarque.

Escrevo esta coluna com nuvens cinzas na cabeça. Leio Mary Del Priore e vejo milhões de vozes de mulheres e crianças morrendo. Uns de fato, outros de dor viva. Para não terminar macambúzia, lembro o episódio do presidente atual do Brasil ao segurar a latinha de guaraná Jesus, no Maranhão. Podem rir. Freud diz que aquilo que tememos ou aquilo que nos incomoda, é aquilo que nos ameaça. É outra coisa que ignoramos. Por isso, a fala revela. Mostra. Escancara.

Marta Bellini

*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.