Alguma coisa está fora de ordem

Edição impressa do dia 18-9-2020

No Brasil não tem vulcões, dizia minha mãe quando eu aprendi a criticar os governantes do Brasil.

No Brasil não tem guerra, ela continuava à medida que eu aumentava meu inventário de julgamentos.

No Brasil tem terra para todo mundo, é o maior país do planeta.

No Brasil tem água para todo mundo.

Mais tarde, em meu debate com meu pai, aumentamos o rol de propagandas da prosaica elite brasileira.

Só é pobre no brasil quem não trabalha (ele fez revisão desse argumento, inteligente que era).

Terra boa, é terra de lavoura.

Aqui, no Brasil, ninguém passa fome.

O trabalho enobrece o homem.

Minha mãe mudou. Não existem vulcões, existem corruptos; esse tipo de vulcanismo político. Meu pai, antes de falecer, em 2004, votou no Genoíno para deputado federal. Que orgulho dele.

Nessa época, eu votava nos trotsquistas; ele disse-me: - Você é sempre do contrário, quando eu chego perto de você, você já está mais radical. A gente ria, tive um pai divertido.

Em 2020, sem meu pai e com minha mãe bem mais crítica do que em 1970/1980, ela diz: - O país está destruído.

Não temos vulcões, mas temos pequenos homens que põem fogo em grandes porções de florestas.

Não temos vulcões, mas matamos com lavas de fogo macacos, antas, cobras, passarinhos, onças. Fritamos animais vivos nas matas. Como as lavas de milhões de vulcões cozinhamos filhotes vivos com suas mães.

Não teremos mais água. Os rios morrem sem as matas. A fúria vulcânica dos agronegociantes avança. Vocês notaram que não pega fogo nas fazendas de soja, nem de gado?

Terra boa é de lavoura? Mas o arroz é exportado pelos reis do agronegócio. Arroz não é comida, é mercadoria.

Não temos vulcões, mas também não teremos mais arroz. Nem feijão.

Não teremos água.

Não teremos matas.

Não teremos bichos.

Não teremos pessoas alimentadas.

Não teremos aposentarias.

Não teremos passarinhos.

Não teremos flores a não ser as de proveta nas mãos de proxenetas.

Nem frutas, nem árvores.

Talvez, no céu, as estrelas migrem para outro lugar.

Um mapa seco pode virar essa terra onde o trabalho não enobrece o homem. Enobrece o nobre.

Marta Bellini*

*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.