Alguma coisa está fora de ordem

Proclamada a era presidencial de 2019/2021, iniciamos, no Brasil, o governo de duas cabeças, a do capital financeiro e a do capital do século XIX. De um lado, banqueiros alegres a brincar de juros altos e empréstimos escorchantes; de outro, a do desmanche dos poucos avanços sociais e culturais. Vou falar da cabeça de vento, a era do avanço para trás, da destruição da educação em prol da escola militar do século XIX.

Lauro de Oliveira Lima, pedagogo brilhante, escreveu o livro, hoje relegado ao esquecimento, Estórias da educação no Brasil, De Pombal a Passarinho. Um livro gostoso de ler em que conta como Portugal impediu, até início de 1800, qualquer gota de escolarização no brasil. Imaginem vocês que até 1759 não tínhamos escolas; se três indivíduos fossem encontrados em uma esquina de uma cidade, já era considerado um crime.

Quando as escolas surgiram, no século XIX, eram para as elites brasileiras. Eram raras. A população acostumou-se a ouvir e a aceitar que o trabalho enobrecia o homem e, de certa maneira, acatou a narrativa das elites. O trabalho e não a educação devia vir antes ao brasileiro comum. Até o século XX, década de 1950 não havia muitas escolas públicas para a população trabalhadora.

Aos homens que podiam estudar, as Forças Armadas eram um caminho. Desde D. Pedro II o projeto era consolidar escolas militares e, para isso, os estudos tinham que se pautar na educação física, para um corpo robusto e boa saúde. A educação física não era uma disciplina no século XIX e até na década de 1970 do início do XX, mas tínhamos preceitos para sua prática.

Em todas as estruturações das escolas militares, a prática física foi o cerne da formação de seus alunos. Nas escolas de elite do Rio de Janeiro, como conta o historiador Victor Andrade de Melo, no livro História dos Homens no Brasil, havia natação, remo, ginástica e exercícios do corpo. Um projeto para formar corpos belos e corajosos. Para variar um pouco, havia também coisas não tão belas ou corajosas nesses colégios como a violência, inclusive de natureza sexual. Os mais fortes abusavam dos mais fracos nos banhos coletivos. Ser magro era motivo de chacota e de violência.

Essa história tardia da escolarização (na verdade, apenas na década de 1950, as escolas estaduais foram ampliadas pela luta de mães, como é o caso do estado de São Paulo) foi a história da domesticação do corpo e criação de uma virilidade ligada à masculinidade do homem forte que fazia corridas de animais, era belo e ágil nos jogos. Os outros modos de ser homem ou como chamamos as demais masculinidades – as de homens não voltados para as forças armadas– ficaram num outro plano, um pouco menos evidente, até o século XX.

No novo século, o XX, as necessidades de trabalhos diversificados, outras escolas para além das militares, outros objetivos sociais, as modas, as vaidades, o cinema e as mudanças de posição dos homens na família ampliaram as masculinidades. No lugar do homem viril e macho que não podia chorar e desdenhava de outros homens e mulheres nasceu o homem pode amar os filhos, pode chorar como os dos filmes, ser gay, ser cantor, ser professor, jornalista, ator. Enfim, pode ser.

Essas mudanças nos modos de ser, de se apresentar à sociedade vieram ao século XXI. Mas, eis que o para o presidente atual, homem que é homem faz ginástica, não é "bundão". Homem que é homem, tem o modus operandi de militar. Do militar do século XIX. Salto em vara para trás. Atleta do passado.

Perguntar ao presidente por que sua esposa do presidente recebeu R$ 98 mil de um amigo? A resposta vem da masculinidade do século XIX, "vou te dar um soco na boca". O mesmo presidente diz que salvou um colega que caiu dois metros abaixo porque fazia ginástica e não era nenhum "desses" aí, os jornalistas. Brasil no antigo seriado O túnel do tempo, no qual a maior esporte de socar o outro, sobretudo aquele que quer saber mais sobre casos (im)prováveis).

Mudou – pelo menos para o governo central – o ideal de homem. Deslocamos os homens múltiplos, os gordos, os magros, os sarados, os franzinos, os homossexuais, os metrossexuais para a masculinidade quase única do homem que faz ginástica, competitivo, belicoso e que foge das responsabilidades de chefe de Estado. Socar a boca do outro quer dizer "vou lhe calar", seu intelectualzinho atrevido.

Já o vice-presidente, com seu sorrisinho de Mona Lisa, diz para nós, brasileiros, deixarmos a provocação para lá. No quartel de Abrantes queremos tudo como dantes, quase duzentos anos atrás.

Marta Bellini*

*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.