Alguma coisa está fora de ordem

O novo normal é o preceito para os tempos da pandemia. Mas, o que é o novo normal? Viver por um tempo de máscaras? Lavar as mãos mais vezes por dia? Não beijar mais? Não folhear livros? Viver mais em home office? Morrer desempregado?

Sem dúvida, o novo normal significa as regras para conviver com o vírus mais experto desses grupos virais. Há, sim, novas regras sanitárias para coexistir com a covid-19. Mas há, também, nesses tempos de pandemia, a normopatia e a normose, doenças da normalidade, termos respectivamente cunhados pela psicanalista neolandesa/francesa Joyce Macdougall e pelos filósofos Pierre Weil, Crema e Leloup.

Sempre tivemos o normal e novo normal e suas consequências mentais, a normopatia e a normose, os exageros doentios da normalidade. Gosto do título de um dos livros de Joyce Macdougall, "Em defesa de certa anormalidade". Está ficando chato aguentar os normais e suas defesas insensatas.

Quem são os normais? São a totalidade das pessoas que vivem o consenso. Quem faz o consenso? As instituições interessadas numa normalidade, nas opiniões iguais, nos hábitos e nos comportamentos semelhantes. Você está entrando em um hospital, vê um cartaz com uma enfermeira pondo o dedo na boca em sinal de silêncio. Você pensa, aqui se faz silêncio em respeito aos pacientes. Não! Esse cartaz está dizendo ao paciente, "Não grite", "não chore aqui". Está impondo aos pacientes não expor sua dor. Lamentável? Sim, mas a normopatia começa sem que saibamos. Incorporamos a mensagem, nesse caso a má mensagem.

Mary Del Priore e Marcia Amantino, em seu livro História do Corpo no Brasil, contam como corpo e santidade foram conectados quando fizemos o culto aos santos. As imagens dos santos cristãos católicos são com roupas longas, capuzes, cordões nas cinturas. São corpos vestidos, santificados, em defesa ao respeito à Igreja e defesa da ordem. O normal cristão. Hoje, no século XXI, temos as roupas de cristãos evangélicos, uma indústria de vestidos longos, com mangas, babados e golas. Corpos com cabelos longos, resignificando a mulher bíblica para quem os cabelos são também as vestes femininas. Os cristãos evangélicos não fazem o culto às imagens de santos, mas o fazem às histórias bíblicas. É o caráter da normatividade religiosa ou da normapatia, a doença do normal excessivo.

A normopatia cristã impede a norma de outras religiões. Há guerra contra os orixás nos Terreiros de Umbanda e Candomblé. Ah, esses deuses sem roupa e cachaceiros. A normopatia induz uma leva de cristãos católicos, evangélicos e outros à porta de um hospital impedir um aborto de uma criança de dez anos de idade. Mas a normose desse grupo não evita o abuso sexual por meio da educação sexual porque sexo pode ser pecado.

A normose nas escolas faz muitos professores evitarem o debate das sexualidades e do abuso infantil. Não está nos currículos, diz um. Não é conteúdo da escola, grita outro.

A normapatia governamental tira dinheiro da saúde e da educação em tempos de pandemia e injeta no ministério da defesa. Mais normose e mais normopatia. Cabelos curtos, sem tatuagens, uniformes e armas, aspiram seguidores da defesa. Curiosamente, defesa, em psicanálise, não é uma coisa boa.

As pessoas normais vestem marcas, não roupas. Adoram propagandas. As cidades grandes têm uma densidade de propagandas maior do que árvores. Normal. Amazônia em chamas? Normal aumento de temperatura. Compro ar condicionado. Normal. Estou triste? Normal. Tomo antidepressivo. Meu filho não aprende? Bebe ritalina, um remédio semelhante aos compostos da cocaína como indicou pesquisa da Unicamp.

Vamos construindo a rigidez normótica e matando os diferentes. Mata-se cada vez mais homossexuais e transexuais. Esses não são normais, diz o normopático. A vida se esvai na linearidade, na ausência de afeto, na falta de imaginação, na dificuldade de compreender o sofrimento do outro.

Foi esse o caso de um grupo de cristãos exaltados no hospital de Recife quando chamaram o médico de assassino e incriminaram uma criança de dez anos (de seduzir um tio "normal"?). Normopatia. O crime é do tio, não do médico. Não é crime da criança. Os normopatas não conseguem alcançar as duas ou as três dimensões do evento. É linear. Perde uma das capacidades de pensar.

Esse Brasil está muito parecido com Portugal de 1749. Assustados com o luxo das roupas francesas e seus enfeites de brocado, de acetinados, fitas, galões, franjas, ornamentos de ouro e prata, falsos ou não, o católico Marquês de Pombal tentou diminuir a importação de tecidos de outros países e combateu o uso de tais roupas espalhafatosas. Pombal, em 1750, nacionalizou inclusive a moda de "panos de terra" para os lusitanos. Sem exageros, por favor, pensou o Marquês. Franceses exagerados. Normose que subsiste ainda hoje lá e cá.

Felizmente, existem as mulheres não normopatas. Foram ao hospital com máscaras, com distanciamento solidário, com variedade de roupas e cabelos para defender a vida. A vida de uma criança que, certamente, morreria, se a gravidez fosse levada adiante.

Marta Bellini*
*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.