Alguma coisa está fora de ordem

Holocausto tropical é o nome da coluna desta semana. Não querendo ferir o conceito de holocausto construído por historiadores, tomo-o emprestado para aludir aos 100 mil mortos por covid-19 no domingo, dia 2 de agosto, seguramente um dia que, em nosso futuro brasileiro, muitas gerações chorarão.

Em primeiro lugar, meus sentimentos aos familiares dos 100 mil mortos por covid-19. Nenhum de nós que não perdeu – ainda – algum parente sabe da dor e da saudade de seus mortos. A dor dos outros não sai no jornal.

A palavra holocausto significa sacrifício praticado pelos antigos hebreus em que a vítima era queimada viva. Ou uma expiação em que o pai oferecia seu filho ao sacrifício. Em tempos de segunda guerra mundial, holocausto é o termo para designar o assassinato em massa de seis milhões de judeus por Hitler durante a segunda guerra mundial. Foi um extermínio étnico da população judaica patrocinado pelo estado nazista, um programa sistemático para apagar – com a morte por gás, por incineração e outros métodos cruéis – um povo. Assim foram assassinados 1,5 milhões de crianças, 2 de mulheres e quase 3 milhões de homens.

Tivemos outras vítimas. Morreram onze milhões de russos civis e eslavos, ciganos, poloneses, comunistas, homossexuais, deficientes físicos e mentais, e também, pasmem, testemunhas de Jeová.

Um livro tristemente belo é o de Bruno Bettelheim, psicanalista, O coração Informado, uma descrição do campo de concentração onde ele próprio esteve, o de Auschewitz. Sobreviveu porque a esposa do presidente Franklin Roosevelt intercedeu a seu favor.

Outro livro sobre o sacrifício de judeus, homossexuais, comunistas, ciganos, mulheres é o de Primo Levi, italiano judeu, É isto um homem? Levi foi aprisionado em 1944 e levado para uma fábrica na Polônia, do complexo de Auschwtiz. Como era engenheiro químico, sobreviveu como operário em uma fábrica.

Na liberdade, após o Shoah, o holocausto, Bettelheim e Levi se suicidaram. Quem suporta tanta memória de luto e dor?

No Brasil o Shoah ou holocausto tem as tintas dos trópicos, do calor, do grande continente. São 100 mil, mas um grupo de médicos da USP de Ribeirão Preto, S.P., lembra a subnotificação das mortes; com isso, estaríamos em torno de 200 mil. Damos pouca informação sobre os mortos. Ou nem damos.

Os sacrificados por desleixos governamentais, por um ministério da saúde inoperante, por empresários e políticos anticiência, por não termos feito campanhas de prevenção, não termos feito testes, são empregadas domésticas, técnicos e enfermeiros da saúde, mulheres grávidas, moradores de rua, trabalhadores de fábricas, mães, pais, avós, primos, vizinhos. São dezenas de nações indígenas. Um holocausto de populações pobres e indígenas que está atingindo a classe média.

Como Hitler muitos políticos passeiam dando comida a emas. Correm com motos ignorando a dor das famílias em luto. E a população, incrédula, faz seu luto em meio a ruídos de estamos todos bem.

Não, não estamos bem. Se, como diz um ditado francês, "a morte só é mal para quem sobrevive", logo todo o Brasil terá apenas dois ruídos, o silêncio da estupidez política e o choro por nossos mortos. Mas do choro vira a insurreição. Quiçá, revelemo-nos. Passou da hora.

Marta Bellini*

*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.