Alguma coisa está fora de ordem

Edição impressa do dia 7-8-2020

Um dos livros interessantes sobre a formação do patronato do Brasil é o de Raymundo Faoro, Os donos do poder. Há controvérsias de sua tese sobre a história do Brasil, mas não é isso que importa nesta Coluna do Jornal do Porto.

O livro é de 1958 e me deixa chateada por não ser um dos livros didáticos do ensino médio, (ainda que com uma tese não mais aceita) sobre essa pobre pátria chamada de Brasil, em referência à uma também infeliz árvore, o pau brasil, roubada da Mata Atlântica até sua extinção como grupo floral da mata. Tomara seja apenas metáfora.

Não é nada agradável ler Os donos do poder, sobretudo, quando você é o espécime do patrão. Mas leiam. Leiam para entender porque existe o patrimonialismo e porque os ricos ficam mais ricos em qualquer época mesmo que seja a da pandemia.

Minha irmã Maria Helena, que está acompanhando meus textos no Jornal do Porto, pediu-me que fizesse uma coluna sobre a pandemia do enriquecimento de 42 empresários no pior período da covid-19 no país. Obrigou-me a ler muita coisa, mas duas pessoas indico aos leitores e leitoras desta coluna: Raymundo Faoro e Maria Lúcia Fatorelli, professora e economista da UFRJ. Há outras excelentes pessoas, mas para um texto curto, abrevei as indicações.

Raymundo Faoro – na minha opinião – pode dar pistas das questões dos economistas atuais no Brasil, em especial, quando falam enriquecimento com dinheiro público.

A invenção do Brasil (e não descoberta, como ainda dizemos) ajudou Portugal a não sumir da Europa. Portugal tinha uma elite ostentosa e um povo às minguas, em 1515. Com o Brasil em suas garras, Dom João III (1521-57) estabeleceu um local de exploração econômica, como disse Faoro, aos tentáculos burocráticos. "O Brasil, tal como a Índia, seria um negócio do rei, integrado na estrutura patrimonial, gerida pela realeza, versada nas armas e cobiçosamente atenta ao comércio".

Para Faoro no desenvolvimento político do Brasil, além do aparelhamento político das instituições públicas mudou o caráter da res-publica. O aparelhamento era composto sempre pelas mesmas camadas de pessoas mantendo a família ou o grupo com as mãos fechadas no dinheiro e riquezas públicas. "Mandamos, não governamos", era o mantra destes grupos. O Direito, nesse caminho não era reconhecido como um bem público e, de modo bem peculiar, apenas fortaleceu as elites. Zero na cidadania. Zero nas manifestações populares que sempre foram sufocadas.

Está aí o "pulo do gato" dos 42 empresários que enriqueceram 43 milhões de dólares. O generoso Banco Central comprou créditos privados destes senhores, parentes das serpentes de bancos privados. Está aí a origem dos 42 empresários que enriqueceram em plena pandemia Alguém ficou sabendo quem são? As grandes mídias não dão os nomes. Nem como esse seleto grupo de ricaços surrupiou dinheiro público com dinheiro podre.

A verdade é essa, doa a quem doer (e meu fígado está em pedaços de tanta dor), BENS PÚBLICOS FORAM DOADOS A PREÇO DE BANANA.

Vejamos:

1 – Imaginem que delícia você comprar três plataformas de petróleo a preço de três apartamentos. Compra-se um patrimônio público prontinho (estrutura e investimento feitos pelo poder público) e com financiamento do BNDES para pagar. O governo federal dá dinheiro público para o ricaço comprar um patrimônio público.

2 - O Banco Central vem transferindo dinheiro público aos bancos por meio das operações de "swap cambial" (R$ 63,5 bilhões somente de janeiro a maio de 2020) e do pagamento da remuneração diária da sobra de caixa dos bancos, nas chamadas "operações compromissadas", cujos juros custaram cerca de R$ 1 trilhão nos últimos 10 anos. Isto está no site Auditoria Dívida Cidadã.

3 - Dinheiro público pagando dívida privada. Dia 23 de março de 2020 o governo permitiu que o Banco Central desse cerca de 1,2 trilhão de reais para empréstimos às pequenas e médias empresas e pessoas para o combate à pandemia e para pagamento de salários de trabalhadores? Mas o que fizeram os bancos? Dificultaram os empréstimos porque pequenas empresas e médias vão à falência mais facilmente. O dinheiro é público ou, não é? A emenda constitucional 106 autorizou ao Banco Central comprar papéis podres e entregar milhões aos bancos e investidores às custas da dívida pública que será paga por nós, professores, trabalhadores de todos os setores, aposentados entre outros.

Por essas e outras mais doações públicas, foi que, na reunião dos ministros dia 22 de abril de 2020 em que Weintraub se deu mal, é que ficamos sabendo que o ministro da economia (com e minúsculo) leu "8 livros". Nem precisaria dizer que leu somente 8 livros. Dar um patrimônio público financiado com dinheiro público, não leu nada. Nem precisaria ter lido. Isso é fraude, não é economia.

Marta Bellini*

*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.