Alguma coisa está fora de ordem

Na memória dos cartazes espalhados na revolta de maio de 1968, na França, por estudantes e operários, havia frases que ressoam até hoje. "Nous sommes tous indésirables", Nós somos todos indesejáveis, me toca profundamente o coração. Havia outros, "Nós somos o poder", "Nós iremos até o fim", "Nós somos belos", "Nós somos trabalhadores", "Nós somos realistas".

Lembrei-me destes cartazes pelo episódio de um casal que, abordados em Copacabana, RJ, em um bar, por estar sem máscaras de prevenção ao covid-19, disse em alto e bom som, "Ele (o marido) não é cidadão, ele é engenheiro civil" ao vigilante sanitário, Flávio Graça. Talvez, numa versão bem diferente da bela rebelião jovem francesa, a esposa quis demarcar a velha desigualdade brasileira, "Nós somos de outra espécie, os formados". Se deu mal, é verdade. No Brasil atual, estamos todos abandonados, não no mesmo barco, é claro.

Também me lembrei da época da ditadura brasileira em que a frase mais comum em qualquer pequeno conflito era, "Você sabe com quem está falando"? Qualquer tentativa de responder, poderia ser preso. Na década de 1980, em São Carlos, SP, um rabugento senhor, me disse, "Você sabe de quem é esta rua"? quando fui ajudar uma mulher sendo agredida por ele e a família. A rua era dele e de sua linhagem de classe média.

Voltando à história do "você sabe", cheguei ao livro O espelho Índio, do psicólogo junguiano Roberto Gambini. Faz mais de uma década que o li, ainda ressoa quando ouço ou vejo as marcas da identidade da alma supostamente gentil brasileira. A frase "Você sabe quem ele é", revela o drama oculto do país.

O livro conta a vinda dos padres jesuítas, Manoel da Nóbrega e José de Anchieta, ao Brasil em torno de 1530, vestidos de preto nos trópicos quentes e de corpos nus. Onde estamos? Quem são esses seres? Queremos voltar à Europa. Os dois escrevem centenas de cartas à sua ordem pedindo o regresso, mas a instituição jesuítica estava falida e despejou os padres em mundos estranhos.

Cresceu uma profunda melancolia nos dois jesuítas. Criaram escolas com modelos autoritários de ensino. Um menino indígena teve seu cesto destruído porque o fizera num domingo, um dia santo. Gambini busca essa gênese como também nos revela – pelas cartas – que essa dureza com o outro diferente era uma projeção deles mesmos. O índio, pelo contrário, projetou um branco bom, do mito ancestral. Mas para os católicos jesuítas, os índios eram a projeção do mal, do demônio, do pecado. Não se vestiam, não trabalhavam os seis dias e nem ficavam o sétimo em reclusão. Os índios eram a projeção negativa para os religiosos. Eram a sombra dos religiosos. O lado inferior da religião, "o lado feio da cara dos jesuítas"

Como diz Gambini, nesse processo, as mulheres indígenas passaram os genes, mas não a cultura, sua identidade. De 1500 para 2020, essa identidade negada, não aceita, foi se hibridizando com outras negações como no trabalho de vigilante, no trabalho manual, na hierarquia das profissões, na desigualdade social. Um acabamento social dolorido, "parece que, no Brasil, nascemos da perda".

Daí, quando o casal é chamado à responsabilidade, essa perda submerge e vem a frase autoritária de nosso passado, "Você não é ninguém, ele é".

Mas, não fiquem tristes, há ainda para nossa alma, a Pharmacia MEME. O mais gostoso remédio é o seguinte.

Alguém pergunta: - Você descende de quem?

O outro responde: - De pobre.

Marta Bellini*

*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.