Ratos e homens?

Edição impressa do dia 3-9-2021

Ratos e homens é um livro para horas de lucidez, as mesmas horas em que curtimos as dores da solidão e da fome de homens e mulheres extraídos de existência. É um livro de John Steinbeck, sobre os trabalhadores de fazendas nos EUA que andaram pela Califórnia à procura de emprego, afeto, comida esobrevivência.

Steinbeck escreveu outros livros como Vinhas da Ira, vencedor do prêmio Nobel em Literatura, em 1962. Em Ratos e Homens como em Vinhas da Ira, Steinbeck narra a saga de homens migrantes e imigrantes, buscando emprego nas fazendas da Califórnia no período de recessão econômica da década de 1930 nos EUA. Em um mundo miserável, cheio de famintos e mortos os personagens só podem ser trágicos. Sem emprego, sem comida e sem casa, levas de homens, mulheres e crianças tornam-se seres rastejantes pela humilhação e pelo descaso; são ratos.

Outro livro que retrata a mesma época é O coração é um caçador solitário, de Carson Mccullers, minha escritora do grupo das prediletas. Há também um filme com direção de Sidney Pollack, protagonizado por Jane Fonda, Eles matam cavalos, não matam? (They Shoot Horses, Don't They ) deste período de destruição humana pela economia do país. No Brasil, o filme foi traduzido como A noite dos desesperados. Trata-se de uma noite de dança por casais competindo o lugar de quem aguenta mais horas dançando para obter dinheiro. Em plena recessão, muitos pensam em ganhar para comer.

Essas obras me vieram à mente durante a semana passada com a luta de comunidades indígenas contra o marco temporal. Seis mil pessoas das diferentes comunidades indígenas estavam em Brasília (e muitos continuam esta semana) para acompanhar a votação no Supremo Tribunal Superior. Fizeram suas danças e suas manifestações sagradas sem serem visibilizados pelos canais de TV hegemônicos. Acompanhei pelos canais alternativos as expressões artísticas, de luta e de suas religiões. São maravilhosos.

No Brasil que eu conheci e conheço, é comum ouvir a frase "índio não trabalha e tem muita terra", vinda da estupidez moral e cognitiva das elites espalhadas para a população toda. Podemos usar a dialética e perguntar: - E os ruralistas, trabalham? Respondo: - Não, eles põem máquinas e peões baratos como no livro de Steinbeck nas suas fazendas; queimam animais que não são dinheiro para eles; saqueiam a terra e plantam soja e transgênicos para comida de animais vendidas na Europa. Ah, mas aumentam o PIB com essas commodities, nome para mercadorias de exportação. Respondo novamente: - Como dizia a economista Maria da Conceição Tavares, ninguém come commodities! Mais: soja não é comida. Nunca foi.

O marco temporal é uma invenção bem patife. Ignorando a história das comunidades indígenas, mais de 300 etnias, um cínico ruralista arquitetou a teoria de que a demarcação é um debate de 1988, ano da elaboração e promulgação da Constituição Federal. E, como todo sabichão das elites rurais, propôs 1988 como marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Apagou a história ancestral das comunidades. Simples assim. O projeto ruralista já conhecemos: queimar o que der e plantar o que queremos, não o que o país precisa. O resultado? Se aprovado, o marco temporal pode acabar com as mais de 300 etnias. Como se não bastasse várias tentativas de genocídio indígena, vem mais essa.

A tragédia não acaba aí. Nas TVs da semana aparecem padres católicos carismáticos, militares tanto do exército como da PM, blogueiros, ruralistas (outra vez!) avocando um 7 de setembro de armas e guerra. Ao mesmo tempo, vemos as mansões de dois filhos 01 e 04 do presidente no destaque das compras; o filho 03 prestes a receber seu pedido de prisão pelo que foi denominado nas salas de políticos de "rachadinhas". Diz-se em Brasília que o filho 03 é o mais frágil deles. Quando se tornou vereador foi em um pleito no Rio de Janeiro contra a própria mãe que tinha sido vereadora da cidade. O pai o obrigou a se candidatar, rendendo ao filho uma certa tensão com a mãe. Essa história está no livro da jornalista Thais Oyama, Tormenta.

A CPI da Covid-19 continua mostrando a pior das falcatruas para comprar falsas vacinas em falsas empresas com dinheiro público do Ministério da saúde. Daria uma série mais contundente do que Dallas, das décadas de 1970 a 1990, sobre uma rica família texana e seu petróleo e gado, os Ewing. A cada depoimento desses dias finais, aumenta a indignação sobre a maior fraude contra os brasileiros na pandemia.

Ao fim e ao cabo, aparecem os ratos alfa, os que não estão dispostos a deixar uma "isca" de lucro para trás. Ratos que comem o dinheiro público e deixam a população desaparecer sob a Covid.

O Brasil despertou seu demônio, sua sombra. Estamos vendo os experts nu e cruamente a estraçalhar o que outrora começava a ser um país. Temos que expurgar tudo, ver claramente quem somos e por que somos assim.

*Professora aposentada da Universidade Estadual de Maringá. Com doutorado em Psicologia, mestrado em educação e graduação em Biologia, diletante em Literatura, uma ornitorrinco, tem a sorte de continuar a ser integrante do Grupo de pesquisa Science Studies CNPq-UEM, na mesma universidade, grupo interdisciplinar de pessoas da filosofia, pedagogia, biologia, física, psicologia entre outras áreas. Sindicalistas nos períodos necessários, teve a honra de participar com colegas de duas grandes greves, a de setembro de 2001 a março de 2002, e a de abril-maio de 2015, as duas contra privatização das universidades públicas do Paraná e a última, também contra a reforma da previdência, além, é claro, de lutar da dignidade salarial.