ASPECTOS HISTÓRICOS FERREIRENSES

  • A Preservação da História Indígena no Museu de Porto Ferreira

Os ferreirenses têm apresentado certa curiosidade sobre as populações indígenas que habitaram Porto Ferreira e região. Muitos equívocos foram transmitidos pela tradição oral ou por dados históricos desatualizados. Quem foram estes indígenas?

Este artigo pretende lançar um olhar sobre algumas fontes históricas, materiais e bibliográficas disponíveis, a fim de construir um discurso que caracterize os antigos habitantes destas terras.

Entretanto, cabe salientar, parte da temática pôde ser reconstruída através das fontes materiais disponíveis no Museu Histórico e Pedagógico "Prof. Flávio da Silva Oliveira", distribuídas entre materiais líticos (machados, trituradores, pontas de flechas, entre outros) e, principalmente, cerâmicos (igaçabas e fragmentos de outros recipientes) encontradas na região.

Arqueologia Tupiguarani

Segundo as principais evidências arqueológicas, a cerâmica indígena, os índios que habitaram a região compreendida entre a bacia do Alto Rio Mogi Guaçu e o Médio Rio Mogi Guaçu pertenciam a Tradição Tupiguarani. A palavra "tradição", neste caso, indica que a referência é o tronco linguístico "Tupiguarani", o qual abriga vários idiomas e povos falantes com uma origem comum, em decorrência das semelhanças apresentadas. Por exemplo, os tupinambás que viviam no litoral brasileiro durante o século XVI, estão incorporados pela tradição Tupiguarani.

Assim, de acordo com CHYMZ (1976), a Tradição Tupiguarani é caracterizada por uma cerâmica amplamente difundida, "policrômica (várias cores - vermelho ou preto sobre engobo branco e ou vermelho), corrugada e escovada, por enterramentos secundários em urnas, machados de pedra polida, e, pelo uso de tembetás".

Alguns sítios arqueológicos Tupiguarani na região, após terem seus fragmentos cerâmicos submetidos a um processo de datação, fazem o seguinte apontamento:

Município

Autor/Ano

Resultado/procedimento

Casa Branca

Moraes (2007)

1085 + ou - 130 (TL)

Luiz Antonio

Caldarelli (1983)

924 (TL)

Mogi Guaçu

Pallestrini (1981/82)

1550 (C14)

Mogi-Mirim

Moraes (2007)

780 + ou - 110 (TL)

Pirassununga

Zanetinni (2005)

450 + ou - 60 (TL)

Fonte: Moraes (2007), p.34

Deste modo, mediante as análises de termoluminescência (TL) e de carbono 14 (C14) pode-se concluir que, há mais de mil anos, os grupos pertencentes à família linguística Tupi-Guarani vinham ocupando a região.

Segundo o Prof. Manoel Pereira de Godoy, "a região compreendida entre Piracicaba, Rio Claro, Porto Ferreira, Pirassununga e até Mogy-Mirim e Mogi-Guassu foi ocupada por volta de 1625, como grande território de caça, de pesca, de obtenção de recursos naturais para o citado grupo Tupi-Guarani, pois, todos os materiais líticos (machados, martelos, raspadores, pilões, pontas de lança e de flechas, etc.), a cerâmica, os desenhos e os rituais funerários são semelhantes entre si em toda a mencionada região (GODOY 1974:151)

Pautado nos estudos apresentados por Camila de Azevedo Moraes, estes sítios apontam para o predomínio da tradição Tupiguarani, porém, demonstram, também, a ocupação da região associada a outros grupos pertencentes à matriz cultural "Macro-Gê". Assim, "as pesquisas ora realizadas em Cachoeira de Emas corroboram a existência de grupos Tupi e não-Tupi (Jê) nessa região por volta dos séculos XV-XVI."

As Igaçabas

"Igaçaba" é uma palavra proveniente da língua tupi e significa "pote grande". Trata-se do principal registro arqueológico da presença Tupiguarani. A decoração da igaçaba é o elemento diferencial dos Tupiguarani, pois são extremamente decoradas, podendo ser do tipo corrugada (aparência semelhante às escamas de peixes), ungulada (característica parecida a pequenas marcas de unhas uniformes), lisa, escovada, ou com pinturas policrômicas (várias cores), recebendo desenhos geométricos de formas variadas. Em outros grupos indígenas, basicamente, as igaçabas apresentam formas simples e ausência de decoração.

Popularmente, as igaçabas são tratadas como urnas funerárias utilizadas pelos índios para enterrar seus mortos. Porém, de acordo com Marcel Mano, "as igaçabas não podem ser interpretadas como simples substitutas aos tipos históricos e culturais de mortalhas". "Os vasos e as tampas não eram fabricados exclusivamente para o uso funerário. Eram recipientes com finalidades práticas e culinárias, tais como potes para água e cocção de alimentos, para armazenar o cauim ou a chicha, bebidas associadas às cerimônias coletivas".

Desta forma, o uso das igaçabas estava relacionado à manifestação religiosa mais importante dos Tupiguaranis: o ritual antropofágico. Segundo Métraux (1979), "era o prisioneiro bem tratado, alimentado e animado; davam-lhe esposa; e, no dia fixado para a sua execução, os habitantes das aldeias próximas, convidados, acorriam numerosos. [...] Começava, então, a bebedeira, que se prolongava até o dia seguinte, data do sacrifício [...]". As mulheres tinham a função de fabricar vasos cerâmicos de vários tamanhos, os quais eram utilizados para guardar tintas e as bebidas fermentadas.

Entretanto, o canibalismo praticado pelos Tupiguaranis não possuía uma função nutritiva, e sim, um aspecto amplamente simbólico. Para Carneiro da Cunha e Viveiro de Castro (1985), a guerra transformava os guerreiros em matadores e vingadores, tendo seus atributos reconhecidos, ao receberem títulos e status de prestígio, hierarquizando o grupo. Baseado na crença, a vítima valente recebia uma morte gloriosa, sendo sua alma rapidamente conduzida para a terra sem males, "o paraíso dos matadores e vingadores e não dos perdoadores". Lá, a alma, considerada inimiga, era novamente devorada pelos deuses, transformando-se em parte deles. Assim, Marcel Mano define que "a antropofagia e as urnas podem ser interpretadas como meios de transposição, de passagem de um plano aos outros".

Logo, é possível concluir que as igaçabas não eram produzidas para se tornarem, simplesmente, urnas funerárias, mas sua elaboração estava associada aos grandes rituais antropofágicos.

Posteriormente às cerimônias antropofágicas, as igaçabas eram utilizadas para os enterramentos de indivíduos da tribo, constituídos por enterramentos primários e secundários. Jean Batiste Debret, em gravura de 1834, retratou o enterramento primário de um chefe coroado – uma urna de base plana, com alças sem decoração contendo o corpo intacto de um indivíduo acocorado. Os índios coroados são os antigos Goitacazes, um dos fragmentos da grande grupo dos Tapuias. Tapuias era um termo construído como uma alegoria da colonização para se opor ao Tupi.

São inúmeras as citações de cronistas e viajantes sobre os enterramentos em igaçabas:

"mettem-no em cócoras, atados os joelhos com a barriga, em um pote em que elle caiba [...]" (Gabriel Soares de Souza, 1964. p.582)

"[...] metem-no em um grande vaso de barro, cobrindo-o com a gamela onde o defunto costumava lavar-se [...]" (Métraux, 1979, Apud Thevet)

Fernão Cardim menciona que os tupinambás lavavam o defunto, e pintavam seus corpos. Já Souza (1964), descreve o ato de o mesmo grupo indígena untar com mel o corpo do morto antes de levá-lo à urna funerária.

Vale salientar a conclusão de Marcel Mano sobre o assunto:

"A predação da natureza pela caça, a predação do inimigo pela guerra e pela antropofagia, e a predação das almas pelos deuses estão, assim, dentro de um mesmo sistema religioso lógico e integrado num amplo circuito de trocas simbólicas". Logo, não se pode incorrer na falha de julgar os costumes Tupiguaranis por meio de uma visão influenciada pelo cristianismo.

Histórico do Material Lítico e Cerâmico do Museu de Porto Ferreira

De acordo com reportagem do jornal "Folha da Manhã", 02/10/1957:

"Ao executarem escavações em uma das vias públicas locais, operários municipais encarregados da instalação da nova rede de esgotos desta cidade encontraram um pote de barro, com ossos em seu interior, e que se presume seja uma urna mortuária indígena (igaçaba). Covidado a opinar sobre o assunto, o sr. Manuel Pereira de Godoy, lente de História Natural no Instituto de Educação de Pirassununga, prontificou-se a restaurar o objeto encontrado, bem como a realizar pesquisas necessárias à sua perfeita identificação. Adiantou ainda ser bastante viável a hipótese alvitrada, já que toda região do vale do Rio Mogi-Guaçu foi habitada pelas tribos Painguá, Caiuá e Cainguá, oriundas do ramo Tupi-Guarani." Entretanto, esta igaçaba encontrada, nas confluências da Rua São Sebastião com a Rua Mathias Cardozo, pelo cidadão Aparecido Bruno, não está no acervo do Museu de Porto Ferreira, tendo em vista que, na época em que foi localizada, como a esta instituição não existia, ela foi destinada ao acervo particular do Prof. Godoy. Para Marcel Mano, é muito provável que os "painguás" denominados pelo Prof. Godoy correspondessem, na verdade, aos "Guarani-Kaiowá".

Em 15 de setembro de 1980, na Vassununga, município de Santa Rita do Passa Quatro, foi encontrada uma igaçaba pelo Sr. Avelino Ferreira, a qual foi doada ao museu de Porto Ferreira. Em outubro daquele mesmo ano, outras duas igaçabas foram achadas na fazenda do Cateto (Butiá), em Descalvado, por João Bet e seus irmãos, sendo ambas cedidas ao acervo do museu ferreirense.

Além das 3 igaçabas, há, também, 3 bordas de vasilhas:

25cm x 20cm, policrômica, com engobo branco cortada por uma faixa vermelha, encontrada na Vassununga; 25cm x 15cm, corrugada, e 25cm x 12 cm, lisa, provenientes de sítio arqueológico não catalogado em terras ferreirenses.

Em conclusão, por detrás de um objeto de acervo museológico há muita história, que justifica a existência dos museus como guardiões das fontes materiais que permitam uma interpretação do passado. Até 2010, foram identificados mais de 3 mil sítios arqueológicos no Estado de São Paulo. Neste ínterim, ainda existem muitos antigos assentamentos indígenas na região a serem descobertos e preservados. Alguns, porém, padecem em meio às lavouras rurais, sofrendo, ano após ano, com ação humana o esfacelamento da história dos indígenas habitaram este pedaço de chão.